Texto 19 - Blaise Pascal - Por Giovanne Reale

BLAISE,PASCAL: AUTONOMIA DA RAZÃO, MISÉRIA E GRANDEZA DO HOMEM E RACIONALIDADE DO DOM DA FÉ


1. A paixão pela ciência

“Na luta pela razão, em que se resume a obra da ñlosofia no século XVIII, a voz de Pascal representa uma nota dissonante. E não pelo fato de pretender defender as crenças tradicionais com meios tradicionais: a ñgura de Pascal não pode ser confundida com a multidão daqueles que insistíam nas velhas posições da metafísica escolástica ou que defendiam as velhas instituições e crenças opondo à razão o peso e a autoridade da tradição. Pascal aceita e assume o racionalismo no domínio da ciência, embora reconhecendo os limites que ele encontra também nesse domínio, mas não considera que o racionalismo possa se estender à esfera da moral e da religião. Pascal considera que, nesse campo, a primeira e fundamental exigência é a compreensão do homem como tal e que a razão é incapaz de alcançar essa compreensão" (N. Abbagnano). Na realidade, Pascal “nunca foi seguidor de Descartes, no sentido de ter aceitado os resultados definitivos da sua filosofia (...). Podemos considerá-lo um cartesiano não no que se refere ao conteúdo material do sistema, mas pelo ambiente intelectual do qual surgiu” (E. Cassirer).

Blaise Pascal nasceu em Clermont, em'19 de junho de 1623. Na biografia de Pascal, escrita por sua irmã Gilberte Périer, podemos ler: "Tão logo meu irmão alcançou a idade da razão, deu sinais de extraordinária inteligência, seja com pequenas respostas dadas a propósito de diversas coisas, seja com certas perguntas sobre a natureza das coisas que surpreendiam a todos. E essa aurora de belas esperanças nunca foi desmentida. Com efeito, com o passar dos anos, crescia nele a força do raciocínio, de forma que era muito superior à capacidade de sua idade.”

A educação do jovem Pascal foi obra de seu pai, como revela Gilberte: "Meu irmão nunca foi ao colégio e nunca teve outros mestres além de meu pai." Etienne Pascal, o pai de Blaise, deixou Clermont em 1631 e transferiu-se para Paris, inclusive com a intenção de cuidar melhor da educação dos ñlhos. Nos primeiros tempos de seu período parisiense, Blaise descobriu sozinho a geometria, “indo tão depressa e impelindo suas pesquisas tão adiante que logo chegou à trigésima-segunda proposição do primeiro livro de Euclides”. O matemático La Pailleur, amigo do pai de Pascal, ficou impressionado com a precoce genialidade do jovem e o introduziu no cenáculo científico (a “académie") do padre Marin Mersenne, cenáculo que era freqüentado por físicos e matemáticos como Desargues, Roberval, Gassendi e Carcavi. O cenáculo reunia-se uma vez por semana e ouvia um relato de algum dos sócios ou então uma comunicação cientíñca de vários cientistas correspondentes, como Descartes, Fermat, Galileu, Torricelli e outros. 

O princípio no qual se inspira o cenáculo do padre Mersenne - cenáculo que, posteriormente, daria origem à Academia das Ciências de Paris - era o de que à ortodoxia em matéria de fé correspondia uma completa autonomia da pesquisa científica fundada na experiência e não nas especulações metafísicas. Pois bem, como diz ainda Gilberte, nesse cenáculo, “meu irmão correspondia plenamente ao seu papel, tanto no exame dos trabalhos alheios como na produção: com efeito, era um daqueles que freqüentemente aportava fatos novos. Naquelas reuniões, também eram examinados com bastante freqüência trabalhos que vinham da Alemanha e de outros países estrangeiros e o seu juízo era ouvido com atenção maior do que a dos outros, porque tinha uma intuição tão lúcida que conseguia descobrir defeitos dos quais os outros não se haviam apercebido”.

Aos dezesseis anos, Pascal escreveu um Tratado sobre os cônicos, “uma obra de grande fôlego, tanto que se dizia que, depois de Arquimedes, não se havia visto nada de tão poderoso”, sempre segundo Gilberte. Pascal não publicou a obra, que acabou se perdendo. Dela nos resta um fragmento, de uma cópia feita por Leibniz (que conseguiu o manuscrito inteiro com o sobrinho de Pascal, Etiene Périer). 
Aos dezoito anos, Pascal inventou “aquela máquina aritmética com a qual se faz todas as espécies de operações, não apenas sem esforço e sem intervalos, mas também sem saber qualquer regra de aritmética e com infalível segurança”. E comenta a irmã de Pascal: “Essa invenção foi considerada uma coisa nova na natureza, no sentido que reduz a mecanismo uma ciência que reside inteiramente na mente e apresenta um meio para realizar todas as operações com uma completa certeza, sem necessidade de raciocínio." Trata-se da primeira máquina calculadora, idealizada por Pascal para ajudar o pai, que estava assoberbado de trabalho em Ruão, onde era "comissário deputado de Sua Majestade na Alta Normandia para a imposição e coleta de impostos”. Pascal empregou dois anos na montagem da máquina, em virtude das dificuldades encontradas pelos artesãos e limadores. Em 1645, solicitou a patente para a sua máquina, o que lhe foi concedido em 1649. Pascal continuou a aperfeiçoar a sua invenção. O último modelo da máquina foi chamado de “pascalina”, datando de 1652 e estando conservado até hoje no Conservatório Nacional das Artes e Ofícios de Paris.

Ainda na biografia escrita por Gilberte Périer, podemos ler: “Aos vinte e três anos, tomando conhecimento da experiência de Torricelli, inventou e realizou outra, que foi chamada de experiência do vácuo, que demonstra claramente que todos os fenômenos até então atribuídos ao vácuo, na verdade, são causados pelo peso do ar.” Ficou célebre o experimento que Pascal fez com que seu cunhado efetuasse no Puy-de-Dôme em 19 de setembro de 1648, através do qual demonstrou que a pressão da atmosfera sobre a coluna de mercúrio de um barômetro torriceliano com o aumento da altitude. Em 1651, escreveu o Tratato do vácuo, do qual só nos restam alguns poucos fragmentos.

2. A “primeira” e a "segunda" conversões

Nesse mesmo ano de 1651, morreu o pai de Pascal. Em janeiro do ano seguinte, Jacqueline ingressou em Port-Royal, onde tomou o véu no mês de maio. Gilberte comenta: “Como minha irmã tinha um grande espírito, tão logo Deus mudou seu coração compreendeu, como meu irmão, todas as coisas que este dizia sobre a santidade da religião cristã e, não podendo tolerar a imperfeição na qual acreditava estar ao permancer no mundo, fez-se religiosa em 'mosteiro muito austero em Port-Royal des Champs, onde morreu aos trinta e seis anos, depois de ter cumprido as mais difíceis funções e de ter merecido em pouco tempo méritos que outras religiosas só conquistam depois de muitos anos.”

Nesse período de tempo, Pascal foi atacado por várias doenças, inclusive uma cefaléia quase insuportável. Os médicos o aconselharam a renunciar a qualquer atividade intelectual e distrair-se. E foi então que Pascal voltou ao mundo. “Freqüentou a corte várias vezes e alguns entendidos observaram que logo se adaptou perfeitamente àquele clima, como se o houvesse respirado durante toda a vida.” Em 14 de abril de 1652, viajou para o pequeno Luxemburgo, a convite da duquesa d'Aiguillon (sobrinha de Richelieu), em companhia de duquesas e cavalheiros, aos quais apresentou a sua máquina calculadora. Ao que parece, também freqüentou os salões de Madame de Sablé. Ligou-se a amigos mundanos como o cavalheiro Meré, o duque de Roarmez e Damien Mitton, com quem freqüentava a alta sociedade. E em cuja companhia também realizou uma viagem de lazer ao Poiteau. 

É sempre Gilberte quem comenta: "Esse foi o tempo mais mal aplicado de sua vida. Com efeito, embora se tenha preservado dos vícios, por misericórdia de Deus, no fundo tratava-se sempre daquele clima mundano, tão diferente do clima do Evangelho. Deus, que lhe pedia maior perfeição, não queria deixa-lo solto por muito tempo no mundo. E, para retirá-lo do mundo, serviu-se de minha irmã, assim como antes se havia servido do meu irmão para tirar minha irmã dos seus compromissos mundanos.” Pascal via freqüentemente Jacqueline - que havia pronunciado seus votos em 5 de junho de 1653 -, que foi quem o convenceu a deixar o mundo e todas as conversações mundanas. E, aos trinta anos, Pascal decidiu abandonar o mundo.

E, assim, depois do chamado "período mundano” (ao qual remontaria o Discurso sobre as paixões do amor, descoberto em 1843 por Victor Cousin e por ele atribuído a Pascal), deu-se a "segunda conversão” de Pascal, a que é atestada pelo famoso Memorial. Mas, antes de passar a esse Memorial, seria bom pelo menos acenar à “primeira conversão que” pôs Pascal em contato com Port-Royal. Em 1646, o pai de Pascal caiu sobre o gelo e fraturou uma perna. Foi confinado aos cuidados de dois competentes médicos, Deslandes e De 1a Bouteillerie, que permaneceram durante três meses na casa de Pascal.

Quem conta é Marguerite Périer, sobrinha de Pascal: “Esses senhores tinham tanto zelo e tanta caridade pelo bem espiritual do próximo quanto tinham por sua saúde corporal. Eles notaram em meu avô e em toda a sua família muito espírito e, considerando como um grande prejuízo que tantos talentos fossem empregados unicamente nas ciências humanas, de que sabiam muito bem a inutilidade e a futilidade, empenharam-se junto a Pascal, meu tio, para induzi-lo à leitura dos livros de sólida piedade e para fazer com que lhe agradassem. E o conseguiram plenamente. Com efeito, como ele tinha um espírito bem formado e ótimo e, embora muito jovem, nunca se havia entregado a todas as loucuras da juventude, Pascal conheceu o bem, o sentiu, o amou e o abraçou. E, quando aqueles senhores o ganharam para Deus, com ele ganharam toda a minha família. Com efeito, tão logo o meu avô, depois daquela grave doença, começou a ficar em condições de dedicar-se a alguma coisa, o seu filho, que começava a gostar de Deus, fez com que ele também o amasse, bem como minha tia, sua irmã, que ficou tão intimamente convencida que decidiu desde então deixar o mundo e fazer-se religiosa (...). Depois, todos conheceram o santo cura (o doutor Guillebert, cura de Ronville, amigo e discípulo de Saint-Cyran), que havia atraído para Deus aqueles dois senhores de que Deus se serviu para iluminar toda a nossa família, e colocaram-se sob a guia desse santo homem, que os conduziu para Deus de modo admirável." Assim, foram os dois médicos que colocaram nas mãos de Pascal as obras de Saint-Cyran, através das quais ele foi convencido. E essa é a história da chamada “primeira conversão” de Pascal.

Já a “segunda conversão” realizou-se em 1654, quando Pascal decidiu deixar o mundo. Nesse mesmo ano, ele publicou o Tratado sobre o equilibrio dos líquidos, o Tratado sobre o peso da massa de ar e o Tratado do triângulo aritmética, além de manter correspondência com Fermat sobre questões de cálculo de probabilidades. Nesse meio tempo, em setembro, Pascal visitou Jacqueline em Port-Royal e confiou-lhe que, “embora em meio às suas grandes ocupações e às coisas do mundo que mais podiam contribuir para fazê-lo amar”, sentia "um grande desprezo pelo mundo e um desgosto quase intolerável pelas pessoas que nele vivem”. Na noite de 23 de novembro de 1654, foi atingido por profunda e fulgurante iluminação religiosa, escrevendo então o Memorial que durante o resto de sua vida manteve costurado em sua roupa, de onde um seu empregado o retirou alguns dias depois de sua morte:

No ano de graça de 1654.
Segunda-feira, 23 de novembro,
dia de são Clemente, papa e mártir,
e de outros no martirológio.
Vigília de são Crisógono mártir e de outros.
De cerca das dez e meia da noite
até cerca de meia-noite e meia.
Fogo.
"Deus de Abrão, de Isaac e de Jacó”
e não dos filósofos e sábios.
Certeza, certeza,
sentimento, alegria, paz.
Deus de Jesus Cristo.
Deum meum et Deum vestrum.
“O teu Deus será o meu Deus."
Esquecimento do mundo e de tudo, à exceção de Deus.
Que só se encontra
pelos caminhos mostrados pelo Evangelho.
Grandeza da alma humana.
“Pai justo, o mundo não te conheceu,
mas eu te conheci."
Alegria, alegria, alegria,
prantos de alegria.
Mas eu me havia separado.
Dereliquerunt me fontem aquae vivae.
“Deus meu, me abandonarias?”
Que eu nunca mais me separe dele,
eternamente.
“Esta é a vida eterna:
que te reconheçam como o único Deus verdadeiro
e aquele que enviaste, Jesus Cristo.”
Jesus Cristo.
Jesus Cristo.
Eu me havia separado:
o afastei, reneguei
e crucifiquei.
Que nunca mais me separe dele.
Que só se conserva
pelos caminhos mostrados pelo Evangelho.
Renúncia total e doce.
Completa submissão a Jesus Cristo e ao meu diretor.
A alegria eterna por um dia de prova sobre a terra.
Non obliviscar sermones tuos. Amen.

3. Pascal em Port-Royal

Em 1655, Pascal transcorreu algumas semanas junto aos “solitaires” de Port-Royal. E provavelmente a esse período remonta a Conversão com o Senhor de Saci sobre Epícteto e Montaigne, cujo texto foi redigido por N. Fontaine, secretário do Senhor de Saci. Jacqueline insitiu junto a Antoine Singlin (1607-1664), um dos mais estimados diretores espirituais de Port-Royal, para que guiasse Pascal em seus primeiros passos. Posteriormente, Pascal foi confiado a De Saci (1613-1684), sobrinho de Antoine Amauld e de Madre Angélica.

Escreve Fontaine: “Naquele período (7 -21 de janeiro de 1655), Pascal também veio a Port-Royal des Champs. Não me detenho em dizer quem era esse homem, que não somente a França, mas toda a Europa, tanto admirou. Sua mente, sempre viva e sempre ativa, era de uma vastidão, de uma elevação, de uma firmeza, de uma agudeza e de uma precisão superiores a qualquer imaginação (...), que encantava e arrebatava a todos.” 

O Manual e os Discursos de Epícteto e os Ensaios de Montaigne era livros com os quais Pascal tivera um longo relacionamento. Para Pascal, Epícteto viu a grandeza do homem, mas não a corrupção da natureza humana, ao passo que Montaigne, ao contrário, só viu miséria. Epicteto “tem uma arte incomparável no perturbar a serenidade daqueles que a buscam nas coisas exteriores e no força-los a reconhecer que são verdadeiros escravos e míseros cegos, pois é impossível que eles econtrem algo de diferente do erro e da dor, de que fogem, sem se entregarem sem reservas unicamente a Deus”. Já Montaigne, por seu turno, “é incomparável no confundir o orgulho daqueles que, fora da fé, têm a pretensão de ser verdadeiramente justos, no mostrar o erro daqueles que se apegam às suas opiniões e acreditam encontrar verdades inabaláveis nas ciências e no convencer tão bem a razão de sua pouca luz e dos seus desvios, que se torna difícil, quando se faz bom uso dos seus princípios, ser tentado a encontrar repugnância nos mistérios”. E aqui que, de certo modo, encontramos algumas das raízes daquelas meditações sobre a grandeza e miséria do homem que depois iremos encontrar nos Pensamentos.

Em 1656, Pascal esteve mais uma vez por duas semanas em Port-Royal, agora sob a tempestade da polêmica antijansenista. Em defesa dos jansenistas, sob o pseudônimo de Luigi de Montalto, ele começou a escreve as Provinciais. Em 23 de janeiro de 1656, saiu a sua primeira Carta escrita a um provincial por um de seus amigos acerca das atuais disputas na Sorbonne. A essa seguiram-se mais dezessete cartas, a última das quais datada de 24 de março de 1657. Em setembro desse mesmo ano, a Congregação do Index condenou as Provinciais. E, enquanto trabalhava nas Provinciais e prosseguia em suas investigações científicas, Pascal tentava realizar também um grande projeto, uma Apologia do cristianismo. Essa obra nunca se concluiu, mas alguns fragmentos desse seu projeto foram reunidos e ordenados nos Pensamentos, publicados pela primeira vez em 1669.

Pascal morreu em 19 de agosto de 1662. Entre 1659 e 1662, ele havia escrito aquela Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças, na qual, entre outras coisas, podemos ler: “Faz, ó meu Deus, que eu adore em silêncio as disposições da tua adorável providência sobre a conduta da minha vida, que o teu flagelo me console e que, tendo vivido no amargor dos meus pecados durante a paz, eu prove a doçura celeste da tua graça durante os males salutares com que me afliges.” E ainda: “Não te peço saúde, nem doença, nem vida, nem morte, mas sim que disponhas da minha saúde e da minha doença, da minha vida e da minha morte, para a tua glória, para a minha salvação e para o benefício da Igreja e dos teus santos, dos quais espero fazer parte por tua graça. Só tu sabes aquilo que é adequado para mim: sê o senhor supremo, faz o que quiseres. Dá-me ou retira-me, mas conforma a minha vontade à tua. E que, com submissão humilde e perfeita e com santa confiança, eu me disponha a receber as ordens da tua providência eterna e que eu adore igualmente tudo aquilo que me vem de ti.” Pascal morreu de tumor abdominal. Antes de morrer, quis se confessar e comungar. E, quando o pároco o abençoou, ele exclamou: “Que o Senhor nunca me abandone!" Teve um novo ataque, do qual não se refez. Deixou de viver precisamente à uma hora de 19 de agosto de 1662. Aos trinta e nove anos e dois meses.

4. As Provinciais

“As cartas provinciais de Pascal constituem uma obra-prima de profundidade e de humorismo, representando um dos primeiros monumentos literários da língua francesa" (N. Abbagnano). Elas “merecem ser novamente lidas e conhecidas, não apenas como inigualável obra-prima literária, mas também como um precioso documento para a história da religião e dos costumes do século XVII" (G. Preti). 

Os jesuítas atacaram Arnauld, que, depois da morte de Saint-Cyran, se havia tornado o líder do movimento de Port-Royal. “Era preciso tentar uma defesa perante a opinião pública, que seguia com vivo interesse a controvérsia, para impedir que os jesuítas alcançassem seu objetivo de fazer passar por heréticos os Messieurs e as religiosas de Port-Royal para assim obter mais facilmente a dispersão dos 'solitários' e o fechamento das 'petites écoles' por eles instituídas. E Pascal assumiu essa tarefa” (P. Serini). 

Mais do que os outros discípulos de Port-Royal, Pascal defendeu a doutrina jansenista contra a autoridade da Igreja, parecendo influenciado por ela e nela inspirado até as últimas conseqüências (E. Cassirer). Nas primeiras três cartas, Pascal procura eximir Amauld das acusações, sustentando que os debates na Sorbonne eram “Disputas de teólogos e não de teologia” e afirmando que os inimigos de Arnauld, em sua polêmica contra ele, não eram movidos tanto pelo zelo religioso, mas muito mais pelo
desejo de pôr Amauld para fora da Faculdade de Teologia. 

Depois dessas primeiras três cartas, Pascal passa ao ataque, deslocando o debate dos problemas de teologia dogmática para os problemas da teologia moral. E ataca profundamente o laxismo moral daqueles “novos casuístas - que eram os jesuítas. As últimas duas cartas (23 de janeiro e 24 de março de 1657) foram escritas depois da condenação, por parte do papa Alexandre VII (pela bula Ad Sacram Beati Petri Sedem, de 16 de outubro de 1656), das cinco proposições “no sentido em que as havia entendido Jansênio”. Pois bem, Pascal diz que as cinco proposições devem ser condenadas, mas observa que elas - no sentido em que aparecem na condenação - não se encontram no Augustinus.

No que se refere mais especificamente à doutrina da graça, Pascal discorda da doutrina dos jesuítas segundo a qual o cristão tem a graça suficiente para se salvar, desde que coopere com sua boa vontade. O que Pascal defende é que as obras não são de modo algum suficientes para obter a salvação sem uma intervenção eficaz da graça divina. A conseqüência de tal concepção é que a salvação não pode ser alcançada com tanta facilidade pela prática não trabalhosa e, no fundo, cômoda dos sacramentos. Em substância, Pascal é contrário a Calvino e a Lutero, para os quais as obras nada contam; entretanto, também é contrário à concepção de Molina, que não admite que as nossas boas obras e a nossa coooperação à salvação se devam à força da própria graça. Juntamente com santo Agostinho, Pascal afirma que as nossas ações devem-se ao nosso livre-arbítrio e que, por isso, são nossas, mas que, ao mesmo tempo, elas também são de Deus, pelo fato de que é a graça de Deus que faz com que o livre-arbítrio produza aquelas ações. Em suma, Deus nos faz querer aquilo que poderíamos não querer. Desse modo, vinculando-se à tradição da Igreja, que vai de Agostinho a Tomás, Pascal afirma a ortodoxia da posição de Arnauld e de Port-Royal.

Não podemos deixar de dizer que, quando a polêmica mais se enfurecia, aconteceu um fato que Pascal e seus amigos consideraram um “milagre”. Esse acontecimento encorajou Pascal em sua ação contra os adversários e o estimulou a refletir sobre os milagres e a escrever a citada Apologia do cristianismo "contra todos aqueles que atacam a veracidade e a santidade do cristianismo”. O acontecimento milagroso é o "milagre do Espinho", sobre o qual Pascal nunca teve dúvidas e que assim nos é contado por Racine: "No convento de Port-Royal, havia uma educanda de dez ou onze anos chamada Srta. Périer, filha do Sr. Périer, conselheiro na Corte dos Tributos de Clermond, e sobrinha de Pascal. Há três anos e meio, vinha sendo afligida por uma úlcera lacrimal no olho esquerdo, a qual, aumentando externamente, já havia corroído tudo internamente, tanto que, perfurando o osso do nariz e o palato, a matéria escorria-lhe continuamente ao longo da glote e das narinas, penetrando-lhe até na garganta (...). Vivia em Paris nessa época o Sr. de 1a Potterie, um nobre e piedoso eclesiástico, que havia reunido com grande amor diversas relíquias, entre as quais assegurava haver inclusive um espinho da coroa de Nosso Senhor (...). As monjas de Port-Royal também pediram para vê-lo; e, com efeito, receberam-no em 24 de março de 1656 (...). Recebido o santo Espinho, as monjas o colocaram no interior do coro, sobre uma espécie de pequeno altar, diante de uma grade (...). Ao término das vésperas, todas as monjas foram beijar a relíquia, segundo os diversos graus: primeiro as professas, depois as noviças e por fim as educandas. A mestra das educandas (...), quando viu a pequena Périer, não pôde deixar de experimentar um sentimento de ternura misturado com compaixão diante de sua face tão deturpada pelo
mal. E lhe disse: 'Roga a Deus, minha filha, e procura fazer com que teu olho doente toque no santo Espinho. 'A menina fez o que lhe havia sido dito (. . .). Encerrada a cerimônia, retirou-se para os seus aposentos, como todas as outras educandas, mas logo que entrou disse à sua companheira: "Minha irmã, não tenho mais nada: o santo espinho me curou.' ”

“As Provinciais são uma obra polêmica não são, porém, um libelo. Nem têm apenas um elevado valor literário (.. .). Elas têm também um conteúdo ideal que excede as contingências históricas e as vicissitudes e necessidades polêmicas a que está ligada a sua gênese. Elas não somente identificaram com segurança os perigos inerentes à excessiva benignidade em que incorriam (por espírito casuística ou por preocupações de política eclesiástica) muitos teólogos da época, jesuítas ou não, e não apenas conclamam as consciências a uma concepção da vida ético-religiosa mais pura e cristã, mas também deram uma clara demonstração dos descaminhos lógicos e práticos a que conduz a aplicação do juridicismo casuística aos problemas da vida moral. E, sendo assim, mesmo sem querê-lo, as Provinciais contribuíram para a dissolução crítica do legalismo ético e para a fundação daquele princípio de autonomia da consciência moral que representa uma das maiores conquistas da filosofia modema” (P. Serini).

5. A demarcação entre saber científico e fé religiosa

No fragmento do Prefácio ao projetado Tratado sobre o vácuo, Pascal traça com impressionante lucidez a demarcação entre ciências empíricas e teologia, especificando os relativos métodos de base e delineando as respectivas características do discurso científico e do discurso teológico. Antes de mais nada, Pascal ataca o princípio de autoridade na pesquisa racional: “(...) O respeito que se tem pela Antigüidade, nas matérias em que ela deveria ter menor valor, chegou a tal ponto que se consideram como oráculos todos os seus pensamentos e como mistérios as suas obscuridades, que não se podem propor coisas novas sem perigo e que o texto de um autor basta para destruir os argumentos mais válidos (...).” 

Dar valor unicamente à autoridade dos livros antigos é, sem dúvida, um defeito. Pascal, porém, não pretende colocar tal defeito de lado apenas para introduzir um outro em seu lugar, isto é, o de achar que o raciocínio é sempre e em toda parte o único valor. Com efeito, há âmbitos nos quais é obrigatório o recurso ao texto: “Quando se trata de saber qual foi o primeiro rei dos franceses, onde os geógrafos situam o primeiro meridiano, que palavras de uma língua morta ainda estão em uso e outras coisas semelhantes, que outros meios poderiam nos ajudar senão os livros? E quem poderia acrescentar alguma coisa de novo ao que eles nos ensinam, dado que queremos somente saber o que eles contêm? Aqui, só a autoridade pode nos iluminar.”

E acrescenta Pascal: “Essa autoridade tem sua principal força na teologia, pois nela é inseparável da verdade e nós não a conhecemos senão através dela, de modo que, para ter a certeza mais absoluta nas matérias mais incompreensíveis para a razão, é suficiente vê-las nos livros sagrados (...)” A realidade é que os princípios da fé “estão acima da natureza e da razão. E a mente humana, como é muito fraca para nos fazer chegar até lá apenas com os seus esforços, só pode alcançar essas sublimes verdades quando levada a elas por uma força onipotente e sobrenatural”. 

Na teologia, portanto, o princípio de autoridade - a referência ao texto em que estão contidas as verdades de fé reveladas - é legítimo e necessário. Mas, precisa Pascal, “não se pode dizer o mesmo das matérias que dizem respeito aos nossos sentidos ou são objeto de raciocínio: aqui, a autoridade é inútil; só a razão tem condições de conhecê-las. Elas têm os seus direitos separados: lá, a autoridade tinha a supremacia; aqui, por seu turno, domina a razão”. E onde dominam a experiência e a razão deve haver progresso: a inteligência “tem toda a liberdade para se expandir: a sua inexaurível fecundidade produz continuamente e as suas invenções podem ser ao mesmo tempo infinitas e ininterruptas”.

Afirma Pascal que, assim, a geometria, a aritmética, a música, a física, a medicina, a arquitetura e todas as ciências que dependem da experiência e do raciocínio devem se desenvolver: “Os antigos as encontraram apenas esboçadas por aqueles que os precederam e nós as deixaremos para os que vierem depois de nós em um estado mais avançado do que as tivermos recebido.” As verdades teológicas e as verdades que obtemos com o raciocínio e a experiência são, portanto, diferentes: eternas as primeiras, progressivas as segundas; dom de Deus as primeiras, fruto da atividade humana as segundas; encontráveis nos textos sacros as primeiras, resultados da engenhosidade humana, de provas racionais e de experimentos as segundas.

Pois bem, a explicitação da diferença existente entre as verdades de fé e as verdades científicas “deve nos fazer lamentar a cegueira daqueles que, nas ciências físicas, apresentam apenas a autoridade como prova ao invés do raciocínio e das experiências, assim como devemos ter horror pela malícia daqueles que empregam apenas o raciocínio na teologia ao invés da autoridade das Escrituras e dos Padres. E preciso encorajar aqueles tímidos que não ousam inventar nada na física e confundir a insolência daqueles temerários que cogitam de novidades em teologia”.

E exatamente aí que Pascal vê a desgraça de seu tempo, já que, diz ele, “vemos que são apoiadas obstinadamente e recebidas com aplausos muitas opiniões novas em teologia, desconhecidas por toda a Antigüidade, ao passo que aquelas que se produzem em física, embora em menor número, parece que têm de ser consideradas falsas sempre que atinjam, mesmo que em pouca coisa, as opiniões acreditadas, como se o respeito pelos antigos ñlósofos fosse um dever, ao passo que o respeito pelos mais antigos Padres seria apenas benevolência". Mas essa atitude deve ser subvertida: é preciso deixar intactas as verdades reveladas e fazer progredir continuamente as verdades humanas.

6. A razão científica entre tradição e progresso

Não querer aceitar novas verdades no âmbito da razão é uma atitude irracional, que ocasiona a paralisação do progresso. Pascal observa que os antigos serviram-se de verdades que lhes haviam sido deixadas e o fizeram “como meios para alcançar novas verdades”. Assim, “nós também devemos tomar  aquelas (verdades) que nos foram deixadas do mesmo modo e, segtmdo o seu exemplo, fazer delas meios e não o objetivo dos nossos estudos, para dessa forma tentar ultrapassá-los, imitando-os”. 

Com efeito, não há nada mais injusto do que tratar os nossos antigos com mais reserva do que eles fizeram com seus antecessores. Propor e experimentar novas idéias não significa desprezar as pesquisas e os resultados dos antigos. Pelo contrário, já que "os primeiros conhecimentos que eles nos deram serviram de degraus para os nossos, de modo que, com tal vantagem, lhes somos devedores da superioridade que temos sobre eles. Com efeito, encontrando-nos em certo grau, a que eles nos conduziram, o menor esforço nos faz subir mais e, assim, com menos trabalho e menos glória, nos encontramos acima deles. E é por isso que podemos descobrir coisas que, para eles, era impossível perceber". Assim, constitui grave erro aquela atitude de quem “considera crime contradizê-los e atentado agregar-lhes alguma coisa, como se eles não houvessem deixado nenhuma verdade a ser descoberta". 

A realidade é que "os segredos da natureza estão ocultos" e que “as experiências que nos fazem conhecê-los se multiplicam continuamente". Assim, pergunta-se Pascal, proibir as novidades científicas não será talvez “tratar indignamente a razão do homem e colocá-la a reboque do instinto dos animais, eliminando sua principal diferença, que consiste no fato de que os efeitos do raciocínio aumentam continuamente, ao passo que o instinto permanece sempre no mesmo ponto?” O animal age por um instinto imutável, "o que já não acontece com o homem, que é feito só para o infinito”. Uma abelha e uma formiga fazem as mesmas coisas durante toda a sua vida: uma abelha e uma formiga de hoje fazem as mesmas coisas que uma abelha e uma formiga faziam há mil anos. Os animais não acumulam experiência, os seus comportamentos são fixos.

Mas com o homem não se dá o mesmo: o homem “está na ignorância no princípio da vida, mas se instrui completamente em seu desenvolvimento: com efeito, ele tira vantagem não só de sua própria experiência, mas também da experiência de seus antecessores, porque conserva na memória os conhecimentos que adquiriu alguma vez e porque as experiências dos antigos estão sempre presentes nos livros que deixaram. E, à medida que conserva esses conhecimentos, também pode aumenta-los facilmente (...)". 

O que é verdadeiramente interessante, prossegue Pascal, é a prerrogativa particular pela qual "não apenas cada homem progride dia a dia nas ciências, mas também todos os homens, juntos, realizam um contínuo progresso com o envelhecimento do universo, já que a mesma coisa acontece com o suceder-se dos homens, como nas diversas idades de um só homem”. Desse modo, "toda a série dos homens, no curso de todos os séculos, deve ser considerada como um mesmo homem, que existe sempre e aprende continuamente”.

Assim, o progresso do conhecimento é o progresso da humanidade, que, quanto mais envelhece, mais sabe. Conseqüentemente, "aqueles que chamamos antigos eram, na realidade, novos em todas as coisas e formavam propriamente a infância da humanidade. E, como acrescentamos aos seus conhecimentos a experiência dos séculos que se seguiram, é em nós que se pode encontrar aquela antigüidade que reverenciamos nos outros. Eles devem ser admirados pelas conseqüências que souberam extrair exatamente daqueles poucos princípios que possuíam e devem ser desculpados por aquelas em que falharam, mais por falta de experiência do que por força de raciocínio".

Em essência, a maturidade ou a velhice daquele “homem universal” que é a humanidade não deve ser buscada nos tempos antigos, mas sim em nossos dias. As teorias do passado (por exemplo, sobre a via láctea, sobre a incorruptibilidade dos corpos celestes, sobre o horror vacui etc.) eram teorias boas para o passado, teorias que então, devido aos meios de observação daquele tempo, eram as melhores disponíveis. Assim, a história passada não deve ser ridicularizada. Deve ser respeitada, mas não deve ser venerada.

Sem os esforços do passado, sem a tradição que nos precedeu, não teríamos chegado onde estamos agora. Mas, para não permanecermos no ponto a que os antigos chegaram, devemos ir adiante, sem achar de modo algum que o progresso do conhecimento seja uma ofensa que fazemos contra os antigos. Nós somos herdeiros de uma tradição que é nossa missão desenvolver e corrigir e talvez até contradizer, se a isso somos levados pela verdade. Como diz Pascal: “Assim, podemos (...) afirmar o contrário daquilo que eles (os antigos) diziam e, qualquer que seja, enfim, o valor dessa antigüidade, a verdade deve ter sempre a precedência, ainda que descoberta recentemente, porque ela é sempre mais antiga do que todas as opiniões que já se teve e, na verdade, seria ignorar sua natureza imaginar que ela só começou a existir quando começou a ser conhecida.”

7. O “ideal” do saber científico e as regras para construir argumentações convincentes

O saber científico, portanto, é autônomo e diverso das verdades de fé: estas, entre outras coisas, são imutáveis, ao passo que as verdades científicas estão e devem estar em expansão. Escreve Pascal nos Pensamentos: “A fé é diferente da demonstração: esta é humana, a outra é um dom de Deus. Justus ex fide vivit (...), mas essa fé está no coração e não nos faz dizer sei, mas creio.” 

E o ideal do saber, isto é, do scire, é exposto por Pascal no escrito Sobre o espírito geométrico e sobre a arte do persuadir. O que é preciso fazer para tornar convincentes as nossas demonstrações? Pois bem, Pascal responde a essa interrogação afirmando que nossas demonstrações só poderão ser convincentes sob a condição de respeitarmos o método da geometria. Para dizer a verdade, mesmo esse método, como logo veremos, também encontra limites. Por essa razão, um método ainda mais eminente e perfeito - mas que, no entanto, é impossível de praticar - deveria consistir em duas coisas principais: “Uma seria não usar nenhum termo cujo sentido não se tenha explicado claramente antes. A outra seria nunca enunciar qualquer proposição que não seja demonstrada com verdades já conhecidas. Em suma, isso significa definir todos os termos e provar todas as proposições.” 

Ora, como comenta Pascal, esse método seria belo, mas é impossível: “Com efeito, é evidente que os primeiros termos que se quisesse definir pressuporiam termos anteriores que servissem para a sua explicação e, da mesma forma, as primeiras proposições que se quisesse demonstrar pressuporiam outras precedentes. Desse modo, fica claro que nunca se chegaria aos primeiros termos e proposições. Assim, levando as pesquisas sempre mais adiante, chega-se necessariamente a palavras primitivas que não podem mais ser definidas e a princípios tão claros que não se encontram outros que sejam mais claros para servir de prova deles.”

Com isso, fica claro que “os homens são naturalmente e imutavelmente impotentes para tratar de qualquer ciência com ordem absolutamente completa”. Entretanto, essa impotência para definir todos os termos e para demonstrar todas as proposições não deve nos fazer desesperar, pois, embora não seja possível um método perfeito e completo, é possível outro, “inferior” ao idealizado porque é “menos convincente, mas não porque seja menos certo”. Trata-se do método da geometria: “Ele não define tudo e não prova tudo, sendo inferior ao outro método nisso; entretanto, supõe somente coisas claras e constantes pela luz natural, sendo por isso perfeitamente verdadeiro, já que é sustentado pela natureza, à falta de demonstração.” 

Portanto, trata-se de fazer com que nossas demonstrações - se elas quiserem ser convincentes - tenham, como premissas verdades evidentes para todos, isto é, proposições estabelecidas por aquele lumen naturale seu intuitus mentis de que fala Descartes nas Regulae ad Directionem Ingenii. Assim, a ordem ou método geométrico, “o mais perfeito para todos os homens, não consiste em definir ou demonstrar nada, mas sim em manter-se na justa medida de não definir as coisas claras e compreendidas por todos os homens e definir todas as outras e de não provar as coisas já conhecidas dos homens e provar todas as outras. Contra tal ordem pecam igualmente aqueles que pretendem tudo definir e tudo provar e aqueles que deixam de fazê-lo nas coisas que não são evidentes por si mesmas”.

E esse, precisamente, é o procedimento indicado pelo método  geométrico, que não define coisas como o espaço, o tempo, o movimento, o número, a igualdade, a maioria, a diminuição e muitas coisas semelhantes, “porque esses termos designam tão naturalmente as coisas que significam, para aqueles que comprendem a língua, que a clarificação que se poderia tentar acabaria por produzir mais obscuridade do que esclarecimento”. A natureza supriu à questão de ter que definir e demonstrar tudo, dando-nos de certas coisas “um entendimento mais claro do que aquele que a arte nos apresenta com as suas explicações”.

Sendo assim, ao alcançar as primeiras verdades conhecidas, a geometria se detém e pede que elas sejam aceitas, pela razão de que não tem nada de mais claro para prová-las: desse modo, “tudo aquilo que a geometria propõe é perfeitamente demonstrado, por luz natural ou por prova”. E a luz natural dá certezas: “O que existe de mais evidente do que esta verdade, de que um número, qualquer que seja ele, pode ser aumentado? (...) Quem pode duvidar que um número, qualquer que ele seja, pode ser dividido pela metade? (...) Da mesma forma, que um movimento, por mais que seja lento, pode ser reduzido pela metade? (...) Nunca conheci uma pessoa que tenha pensado que um espaço não possa ser aumentado (...).” E, se essas e outras coisas são tão certas, então “a impossibilidade de serem definidas é mais perfeição do que defeito, porque não provém de sua obscuridade, mas sim de sua extrema evidência, que é tal que, mesmo não se tendo a convicção das demonstrações, tem-se a certeza”.

Existem, portanto, “verdades que estão ao nosso alcance”, verdades naturais sabidas por todos, como, por exemplo, a de que “o todo é maior do que uma de suas partes", a partir das quais, uma vez reconhecidas, podemos ter infalivelmente conclusões persuasivas. E, pelo que foi dito, o método ideal que realiza a “arte do persuadir” consiste em três partes essenciais: 1) definir, por meio de definições claras, os termos do quais devemos nos servir; 2) propor princípios ou axiomas evidentes como fundamento da prova; 3) na demonstração, sempre substituir mentalmente os termos deñnidos pelas definições. Na opinião de Pascal, essas três partes essenciais são explicitadas por um conjunto de regras que, respectivamente, dizem respeito às definições, aos axiomas e às demonstrações. E as regras essenciais dentre todas são as seguintes:

Regras necessárias para as definições. Não admitir nenhum termo um pouco obscuro ou equívoco sem definição. Nas definições, usar somente termos perfeitamente conhecidos ou já explicados.”

Regras necessárias para os axiomas. Nos axiomas, enunciar somente coisas evidentes.”

Regras necessárias para as demonstrações. Provar todas as proposições, usando somente os axiomas evidentíssimos em si mesmos ou proposições já demonstradas ou admitidas. Nunca abusar da ambigüidade dos termos, deixando de substituir mentalmente as definições que os restrinjam ou expliquem o sentido.”

8. Esprit de géométrie e esprit de finesse

Portanto, é esse o ideal de saber para Pascal. Mas não devemos de modo algum passar por alto o fato de que ele é precisamente um ideal. A argumentação é convincente se, de premissas evidentes em si mesmas, se deduzem corretamente as conseqüências. Naturalmente, Pascal é de opinião de que uma mente vigilante e atenta, não obnubilada por desejos e paixões, está em condições de intuir. Nisso reside aquele esprit de finesse que iria adquirir sempre mais peso no pensamento posterior de Pascal e que, diferentemente do esprit de géométrie, permite captar a riqueza e a profundidade da vida. 

Como podemos ler nos Pensamentos, o esprit de géométrie é relativo a princípios que, por assim dizer, “são palpáveis”: “seria preciso ter mesmo uma mente completamente falseada para raciocinar mal sobre princípios tão rudimentares que é quase impossível que nos escapem". Mas, “na mentalidade intuitiva, os princípios pertencem ao uso comum e estão sob os olhos de todos. Não é necessário nada mais além de prestar atenção a eles, sem muito esforço: basta somente uma boa vista, mas que seja verdadeiramente boa, pois os princípios são tão tênues e tão numerosos que é quase impossível que algum deixe de escapar. Ora, a omissão de um princípio leva ao erro: por isso, é preciso ter a vista
bem clara, para Ver todos os princípios, mas também ter uma mente equilibrada, para não raciocinar falsamente sobre os princípios conhecidos".

A realidade do homem é um “prodígio” complexo, enigmático, contraditório, profundo e rico de infinitos aspectos: trata-se de uma realidade que escapa aos esforços mais tenazes e aos reiterados ataques da racionalização. Pascal, “além dos objetos 'claros' e 'tangíveis' da geometria, também descobre as “coisas do sentimento', de fínesse, cujo conhecimento não é ensinado, mas experimentado” (M. F. Sciacca).

E, segundo Pascal, os muitos princípios que dizem respeito à realidade do homem “são apenas entrevistos, são mais sentidos do que vistos - e são necessários esforços infinitos para dá-los a entender àqueles que não os entendem sozinhos. Trata-se de coisas tão delicadas e tão numerosas que é preciso um faro muito refinado e preciso para senti-las e julga-las correta e justamente segundo esse sentimento, sem, muitas vezes, poder demonstrá-las metodicamente, como se faz em geometria (...). E preciso Ver a coisa de golpe, com um só olhar, sem proceder por raciocínio, pelo menos até certo ponto. Por isso, é raro que os geômetras sejam intuitivos e que os intuitivos sejam geômetras". 

Portanto, só podemos produzir argumentações convincentes a partir de premissas certas. Mas as premissas certas dos geômetras são “grosseiras", ou seja, aquelas que, no fim das contas, não conseguem captar os lados mais ricos e interessantes da realidade e da vida. É preciso, portanto, o esprit de fínesse. Mas, para Pascal, também o esprit de finesse tem uma forte valência normativa, pois também é um ideal regulador. Com efeito, o homem freqüentemente tende a se enganar, a refutar a verdade, a conviver com o erro, a entregar-se à mentira.

Como diz Pascal, "é uma doença natural do homem acreditar que possui a verdade diretamente e disso decorre que está sempre disposto a negar tudo o que lhe é incompreensível”. E ainda: “Todos os homens são quase sempre levados a crer, não pelo caminho da demonstração, mas pelo caminho do que lhes agrada." E, nos Pensamentos, ele acrescenta: “O homem é um ser cheio de erro: erro natural e ineliminável sem a graça. Nada lhe mostra a verdade. Tudo o engana. Estes dois princípios de verdade, a razão e os sentidos, não só carecem de sinceridade, mas se enganam mutuamente. O sentidos enganam a razão com as falsas aparências. E esse mesmo engano que os sentidos armam para a razão, por seu turno, o recebem da razão, que, desse modo, se vinga. As paixões da alma turbam os sentidos, neles produzindo impressões falsas. Mentem e se enganam reciprocamente.”

A razão não é um dado de fato, é muito mais um imperativo. Mas, mesmo quando ela alcança seus objetivos e nos põe diante de verdades válidas para todos, das quais é possível extrair conseqüências também verdadeiras, entretanto nós percebemos que essas verdades já não contam tanto assim. Há outros domínios e outras realidades, que o esprit de géométrie não pode alcançar, mas que, porém, são alcançáveis através do esprit de fínesse, isto é, através daquela “visão verdadeiramente boa”, não obnubilada por paixões e desejos. “A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral no tempo da aflição, mas a ciência dos costumes sempre me consolará da ignorância das coisas exteriores.”

E eis ainda uma significativa confissão de Pascal sobre os limites da ciência em relação aos problemas mais importantes para o homem: “Eu havia passado muito tempo estudando as ciências abstratas, mas havia me desgostado pela pouca comunicabilidade que dele se podia extrair. Tão logo comecei o estudo do homem, vi que aquelas ciências abstratas não são próprias do homem e que, ao estudá-las, eu estava me desviando mais da minha condição do que os outros ao ignorá-las.” Ademais, as verdades ético-religiosas são inteiramente estranhas a investigações científicas, mas é precisamente delas que depende o nosso destino e a elas, somente a elas, é que está ligado o sentido de nossa existência: diz Pascal que as verdades divinas não são parte da arte de persuadir, “porque estão infinitamente acima da natureza: só Deus pode infundi-las na alma e do modo como mais lhe agradar”.

9. Grandeza e miséria da condição humana

“O homem, evidentemente, é feito para pensar: nisso reside toda a sua dignidade e a sua função. E todo o seu dever consiste em pensar como se deve. Pois bem, a ordem do pensamento está em começar pelo próprio 'eu', pelo próprio autor, pelo próprio fim.” Assim como para Montaigne, também para Pascal o homem é o objeto sobre o qual a filosofia deve refletir. E a reflexão filosófica sobre o homem leva logo à consideração de que “o pensamento constitui a grandeza do homem”.

E o pensamento que faz o homem diferente de todos os outros seres criados: “O homem nada mais é que uma cana, a mais fraca da natureza - mas é uma cana pensante. Não é necessário que o universo todo se arme para esmagá-lo: um vapor ou uma gota d'água basta para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem ainda seria mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e sabe da superioridade do universo sobre ele; já o universo, ao contrário, não sabe nada. Toda a nossa dignidade, portanto, consiste no pensamento. E com o pensamento que devemos nos nobilitar e não com o espaço e o tempo que poderemos preencher. Cuidemos portanto de pensar bem: esse é o princípio da moral.” O pensamento é "uma coisa maravilhosa e incomparável por natureza".

Assim, é no pensamento que estão a dignidade e a grandeza do homem. E a grandeza do homem é tão evidente que pode ser deduzida até mesmo de sua miséria: “Com efeito, aquilo que é natureza nos animais, nós chamamos 'miséria' no homem, do que deduzimos que, sendo hoje a sua natureza semelhante à dos animais, ele decaiu de uma natureza melhor, que outrora lhe era própria.” Mas, em todo caso, a grandeza do homem também está no fato de “que se reconhece miserável. Uma árvore não sabe que é miserável. Mas ser grande equivale a conhecer que se é miserável.”

E eis alguns sinais da miséria humana. Existem dois princípios de verdade: a razão e os sentidos; mas, como já sabemos, tanto uma como os outros “não somente carecem de sinceridade, mas também se enganam mutuamente". E, se deixamos de lado a razão científica e nos colocamos lucidamente diante dos nossos comportamentos morais, então a miséria humana aparecerá em toda a sua evidência. “Nós não estamos contentes com a vida que temos em nós e em nosso próprio ser. Queremos viver uma vida imaginária no conceito dos outros e por isso nos esforçamos por aparecer. Ficamos continuamente estudando como embelezar e conservar o nosso ser imaginário - e esquecemos do verdadeiro.”

Na realidade, diz Pascal, “somos tão presunçosos que gostaríamos de ser conhecidos de toda a terra, como também por aqueles que viverão quando não existirmos mais; e somos tão vaidosos que a estima de cinco ou seis pessoas que nos circundam já basta para nos alegrar e deixar contentes”. A vaidade está arraigada no coração do homem: um soldado, um servente, um cozinheiro ou um varredor, com vaidade, anseiam por admiradores; “os próprios filósofos também os querem; e aqueles que escrevem contra a glória querem ter a glória de ter escrito bem; e aqueles que os lêem querem ter a glória de tê-los lido; e talvez até eu, que escrevo estas coisas, também a queira; e talvez aqueles que me lerem”. Não só a vaidade, mas também o orgulho: "Em meio às nossas misérias, erros etc., o orgulho toma naturalmente posse de nós. Estamos até dispostos a perder a vida com alegria, desde que se fale disso.”

Mas as coisas não ficam nisso, já que a miséria humana para a qual Pascal volta a sua atenção é a miséria ontológica de condição humana: “No fundo, o que é o homem na natureza? E nada em relação ao infinito, é tudo em relação ao nada, algo de intermediário entre o nada e o tudo. Infinitamente distante de poder abraçar os extremos, o princípio e o fim das coisas lhe estão irremediavelmente ocultos em um impenetrável segredo, pois ele é igualmente incapaz de ver o nada do qual foi extraído e do infinito pelo qual foi engolido. O que pode ele fazer então senão captar algumas aparências daquilo que é intermediário entre as coisas, em um etemo desespero por poder conhecer o seu princípio e o seu fim? Todas as coisas saíram do nada e estão voltadas para o infinito. Quem poderá seguir esses caminhos maravilhosos? Só o autor dessas maravilhas as compreende; ninguém mais pode fazê-lo (...). Então, devemos nos dar conta de nossas possibilidade: nós somos alguma coisa, mas não somos tudo; o tanto de ser que possuímos nos impede o conhecimento dos princípios que saem do nada e aquele pouco de ser que possuírmos nos oculta a visão do infinito (...).”

Segundo Pascal, essa é a nossa verdadeira condição, que nos torna incapazes de saber com certeza e de ignorar em absoluto: “Nós navegamos em um vasto mar, sempre incertos e instáveis, atirados de um lado para outro. Todo escolho em que pensamos nos agarrar para nos salvar acaba nos abandonando; se o seguimos, escapa-nos, foge das nossas mãos e some, em uma fuga eterna. Para nós, nada se detém. Essa é a nossa condição natural, que, no entanto, é a mais contrária à nossa inclinação: desejamos ardentemente encontrar um alicerce e uma base última para edificar uma torre que se erga até o infinito, mas nossos fundamentos se dissolvem e a terra se abre em abismos."

Essa é, portanto, a condição humana: o homem é um ser instável e incerto, “não é anjo nem fera". E a grandeza do homem reside justamente no fato de “que se reconhece miserável”. E suas misérias provam a sua grandeza: “são misérias de um grande senhor, misérias de um rei destronado". Uma árvore não sabe que é miserável, mas o homem sim: “de miserável, só existe o homem". Portanto, a grandeza e a miséria do homem estão solidamente ligadas. E “é perigoso mostrar muito ao homem o quanto ele é semelhante aos animais sem mostrar-lhe a sua grandeza. Também é perigoso mostrar-lhe muito a sua grandeza, sem a sua baixeza. E é ainda mais perigos deixá-lo ignorar uma e outra. Por isso, é muito útil mostrar-lhe tanto uma como a outra”.

Em suma, o homem não deve acreditar ser animal, mas também não deve presumir que é anjo. Por isso, “se se vangloria o rebaixo; se se rebaixa, o glorio; contradigo-o até que compreenda que é um monstro incompreensível”. Esse é o realismo trágico de Pascal: o homem é plasmado de grandeza e miséria e, sozinho, com suas próprias forças, só consegue compreender que é um monstro incompreensível; sozinho, não conseguirá criar valores válidos e nem encontrar um sentido estável e verdadeiro da existência. 

Como escreve Pascal: "Censura igualmente tanto aqueles que se põem a louvar o homem como aqueles que o censuram por sectarismo ou aqueles que preferem divertir-se com ele: só posso aprovar aqueles que buscam gemendo". E buscam gemendo porque reconhecem a maldade de sua vontade corrupta e a impotência da razão no âmbito ético e no domínio religioso, mas ao mesmo tempo percebem o Bem que não têm. Mas, comenta Pascal, "é bom cansar-se e esforçar-se na inútil busca do verdadeiro bem, para estender os braços ao Libertador". Na realidade, a miséria do homem e todas as contradições perceptíveis naquele monstro incompreensível que é o homem “pareciam me afastar cada vez mais do conhecimento da religião, mas, ao contrário, conduziram-me mais depressa para a religião".

10. O divertissement

O homem, portanto, é uma criatura constitutivamente miserável. Ele "não sabe em que lugar se colocar. Ele se desviou visivelmente, tendo caído de seu verdadeiro lugar sem poder agora reencontrá-lo. E procura por toda parte, com inquietude e sem sucesso, entre trevas impenetráveis”. Ora, a lucidez sobre essa miséria ontológica do ser humano impele Pascal a ajoelhar-se e invocar aquele sentido da vida que o homem, por si só, não consegue criar. Porque esse não é o caminho geralmente seguido pela
humanidade. 

Com efeito, diz Pascal, "as misérias da vida humana estão na base de tudo isso; tão logo os homens se aperceberam disso, optaram pela diversão”. Ou seja, não conseguindo vencer a morte, a miséria e a ignorânica, decidiram não pensar nelas para tornarem- se felizes”. A diversão - o divertissement - é uma fuga diante da visão lúcida e consciente da miséria humana. E perturbação. “A única coisa que nos consola das nossas misérias é a diversão. E, no entanto, essa é a maior das nossas misérias. Porque é principalmente ela que nos impede de pensar em nós e nos leva inadvertidamente à perdição. Sem ela, nós ficaríamos entediados e esse tédio nos impeliria a procurar um meio mais sólido para sair disso. Mas a diversão nos distrai, fazendo-nos chegar inadvertidamente à morte.”

Os homens são invadidos por preocupações desde cedo, toda manhã. E, se lhes acontece de ter algum momento de trégua, “eles são aconselhados a usá-lo para se divertirem e entregarem-se ao lazer, empenhando-se sempre completamente nisso. Como é insondável e como está cheio de poluição o coração do homem!” O homem vive sempre ocupado ou entregue à diversão, com medo de ficar só consigo mesmo, de olhar para dentro de si. Ele tem medo de sua própria miséria.

E como diz Pascal: “Deixai um rei inteiramente só, sem qualquer satisfação dos sentidos, sem qualquer preocupação na mente, sem companhia: deixai que pense em si, à sua vontade, e logo percebereis que um rei sem diversões é um homem cheio de misérias. E por isso que se tem tanto cuidado para evitar tudo isso: em volta de um rei, nunca falta um grande número de pessoas, que providencial para que aos negócios sigam as diversões e que estão atentas a todas as horas que ele tem disponíveis, para oferecer-lhe prazeres e diversões, de modo que não haja nunca um momento desocupado. Ou seja, os reis são circundados por pessoas que estão atentas para que eles não fiquem sozinhos e em condições de pensarem em si mesmos, sabendo muito bem que, pensando, seria miserável, apesar de rei.”

A miséria humana e a vaidade do mundo estão ai', aos olhos de todos. Então, procuramos nos divertir, nos distrair e desviar o nosso olhar daquilo que nós verdadeiramente somos e que constitui a nossa mais autêntica profundidade. E o fazemos porque não suportamos a nossa miséria e a nossa infelicidade. Salomão e Jó, comenta Pascal, “foram os únicos que conheceram bem e melhor falaram da miséria do homem: o primeiro era o mais feliz, o segundo o mais infeliz; o primeiro conhecia por experiência a vaidade dos prazeres, o segundo a realidade dos males”. 

A realidade, portanto, é que nós somos míseros e infelizes. E isso pode ser provado pela afirmação de que, “se nosso estado fosse verdadeiramente feliz, não seria preciso distrair o nosso pensamento para nos tomar felizes”. Mas é precisamente isso o que fazemos: mergulhamos na distração e na diversão para não ficarmos sós, frente a frente com o nosso “eu” e a nossa miséria. “Quando eu me punha a considerar as diversas agitações dos homens e os perigos e penas a que se expõem, na corte ou na guerra, e que são causa de tantos litígios, de tantas paixões, de tantas empresas ousadas e de tantas ações amiúde más etc., descobri que toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa: ou seja, de não saber ficar tranqüilo em um aposento. Um homem que tem o bastante para viver, se soubesse ficar em casa com prazer, não sairia de casa para navegar ou para sitiar uma fortaleza. Não se compra uma patente no exército por preços tão caros senão porque se considera insuportável permanecer na cidade e não se procuram conversações e diversões senão porque não se pode ficar por gosto na própria casa.”

Os homens não querem ñcar sós. E a razão disso “consiste na infelicidade natural da nossa condição, fraca, mortal e tão miserável que nada pode nos consolar quando a consideramos seriamente”. Conseqüentemente, os homens “procuram precisamente a confusão” e “amam tanto o barulho e a balbúrdia; por isso é que a prisão é um suplício tão horrível; por isso é que o prazer da solidão é uma coisa incompreensível”. Desse modo, se explica por que os homens procuram tanto o jogo, a conversa das mulheres, a guerra, os grandes cargos.

Pergunta-se Pascal: “O que significa ser superintendente, chanceler ou presidente senão encontrar-se em uma situação na qual, desde o amanhecer, um grande número de pessoas acorre de toda parte, a ponto de não lhes deixar uma hora sequer no dia em que possam pensar em si mesmos? E depois, quando caem em desgraça e são enviados para as suas casas de campo, onde não lhes faltam bens nem servidores que os assistam em suas necessidades, nem assim deixam de ser miseráveis e abandonados, porque ninguém lhes impede de pensarem em si mesmos.”

A diversão é uma fuga de nós mesmos. E uma fuga da nossa miséria. Mas ela é a maior das nossas misérias, porque nos impede de olhar para dentro de nós mesmos e de tomar consciência do nosso estado de indigência essencial, impedindo-nos assim de buscar e trilhar o único caminho em condições de nos levar para fora do beco sem saída da nossa miséria. A diversão diverte, desviando-nos do reto caminho. Ela não é uma alternativa digna do homem. Se o homem lança-se à confusão e deixa-se perturbar, está renunciando precisamente à sua dignidade, além de renunciar àquelas verdades às quais só o pensamento pode nos levar. E o pensamento leva à verdade essencial de que o homem é constitutivamente indigente e mísero. E com base nesse seco reconhecimento que Pascal constrói a sua apologia do cristianismo.

11. A impotência da razão para fundamentar os valores e provar a existência de Deus

A razão é limitada; a Vontade humana é corrupta; o homem se descobre essencialmente indigente e miserável; tenta fugir desse estado mergulhando na confusão dos divertimentos; mas a diversão revela-se uma miséria ainda maior, pois obstaculiza o caminho da redenção para o homem. E a salvação não é fruto da ciência nem da filosofia: “Submissão e reto uso da razão: nisso consiste o verdadeiro cristianismo."

A razão é impotente diante das verdades éticas e religiosas: “O supremo passo da razão está em reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Se não chega a reconhecê-lo, ela é muito fraca. Mas, se as coisas naturais a transcendem o que dizer das coisas sobrenaturais? Nada é tão conforme à razão quanto essa denegação da razão (. . .). A fé é um dom de Deus. Não penseis que dizemos que ela é um dom do raciocínio. As outras religiões não falam assim de sua fé: dão apenas o raciocínio para que se chegue a ela, ele nunca a alcança. A fé é diferente da demonstração: esta é humana, aquela é um dom de Deus."

Falando a propósito das normas éticas em seus Ensaios, Montaigne escreveu que "a regra das regras e a lei geral das leis é de que ninguém deve observar aquela do lugar onde se encontra”. Pois bem, na opinião de Pascal, essa regra geral é uma flagrante demonstração do fato de que, com sua razão, os homens não conseguiram saber o que é a justiça. Se o homem a conhecesse, então “o esplendor da verdadeira eqüidade teria conquistado todos os povos e os legisladores não teriam tomado como modelo, ao invés da justiça imutável, as fantasias e os caprichos dos persas e dos alemães".

A verdade é que "três graus da latitude subvertem toda a jurisprudência; um meridiano decide da verdade; ao cabo de poucos anos, mudam as leis fundamentais; o direito tem suas épocas (...). Singular justiça, que tem um rio por limite: verdade do lado de cá dos Pireneus, erro do lado de lá”. E, com efeito, "o furto, o incesto, o assassínio de filhos ou pais, tudo já encontrou lugar entre as ações virtuosas. Pode ocorrer coisa mais irônica que esta: que um homem tenha o direito de me matar somente porque mora na outra margem do rio e o seu soberano está em litígio com o meu, embora eu não esteja com ele?" Claro, diz Pascal, há leis naturais, mas “essa bela razão corrupta corrompeu tudo” e nós não temos um critério humano seguro para conhecer e avaliar a justiça. Se sabemos que existe uma justiça é porque “a Deus aprouve nos revelá-la". 

Se a razão humana não conhece e não sabe avaliar a justiça, por si só ela não pode muito menos chegar a Deus. Escreve Pascal: “As provas metafísicas de Deus estão distantes do modo comum de pensar dos homens e são tão confusas que se mostram pouco eficazes. E, mesmo que fossem adequadas para alguns, serviriam só para o breve momento em que têm a demonstração diante dos olhos, pois uma hora depois já temem ter-se enganado. E esse o resultado a que conduz o conhecimento de Deus sem o conhecimento de Jesus Cristo: comunicar-se sem mediações com o Deus que se conheceu sem mediador. Ao passo que aqueles que conheceram Deus pela mediação de um mediador conhecem sua própria miséria." Por isso, "rir-se da filosofia significa filosofar verdadeiramente”. "O coração - e não a razão - é que sente Deus. E isto é a fé: Deus sensível ao coração e não à razão". “O coração tem razões, que a própria razão desconhece."

É uma experiência longa, contínua e uniforme que “nos convence sempre da nossa impotência para alcançar o bem com nossas forças”. Estamos sempre insatisfeitos, pois a experiência nos engana. E, de infelicidade em infelicidade, chegamos a uma morte sem sentido. "Desejamos a verdade, mas só encontramos incerteza. Procuramos a felicidade, mas só encontramos miséria e morte. Somos incapazes de deixar de desejar a felicidade e a verdade, mas também somos incapazes de ter a certeza e a felicidade. Esse desejo nos é deixado, seja como punição, seja para nos fazer sentir de que ponto nós caímos." A nossa razão é corrupta e a nossa vontade é má. Nenhuma coisa humana pode nos satisfazer. Somente Deus é a nossa verdadeira meta. Efetivamente, “se o homem não é feito para Deus, por que então ele não é feliz senão em Deus?” Ademais, "para ser verdadeira, uma religião deve ter conhecido a nossa natureza. Deve ter conhecido a grandeza e a pequenez, bem como a causa de uma e de outra. E quem a conheceu senão a religião cristã?" Com efeito, substancialmente, a fé cristã nos ensina apenas estes dois princípios: “a corrupção da natureza humana e a obra redentora de Jesus Cristo".

12. "Sem Jesus Cristo, não sabemos o que é a nossa vida, a nossa morte, Deus e nós mesmos”

Portanto, não há nenhuma contraposição entre a fé cristã e a natureza humana. A fé cristã ensina “que há um Deus do qual os homens são capazes e que há uma corrupção da natureza que os torna indignos dele. Interessa aos homens conhecer igualmente tanto um como o outro ponto, pois é igualmente danoso para os homens conhecer Deus sem conhecer sua própria miséria e conhecer sua própria miséria sem conhecer o Deus que pode curá-los. Um desses conhecimentos, isolado, gera a soberba dos filósofos, que conheceram Deus mas não sua própria miséria, ou o desespero dos ateus, que conhecem sua própria miséria sem conhecer o Redentor”. A fé em Cristo, em suma, é uma fé no homem.

Mas é preciso repetir que nós não conhecemos Deus através da ciência e da filosoña: Deus não se demonstra com a razão. “Como, vós também não dizeis que o céu e os pássaros provam a existência de Deus? Não. E a nossa religião, não o diz? Não, porque, embora em certo sentido isso seja verdade para algumas almas, às quais Deus concede essa luz, nem por isso deixa de ser falso para a maioria.”

Para Pascal, a realidade é que “nós só conhecemos Deus por meio de Jesus Cristo. Sem esse Mediador, é impossível qualquer comunicação com Deus: é por meio de Jesus Cristo que conhecemos Deus. Todos aqueles que pretenderam conhecer Deus e provar sua existência sem Jesus Cristo tiveram apenas provas ineficazes. Para provar Jesus Cristo, porém, nós temos as profecias, que são provas sólidas e tangíveis. E o fato de que elas se confirmaram verdadeiras e foram provadas pelos acontecimentos fundamenta a certeza daquela veracidade, constituindo, assim, a prova da divindade de Jesus Cristo. Entretanto, é nele e por ele que conhecemos Deus. Sem isso, sem a Escritura, sem o pecado original e sem o Mediador necessário, prometido e chegado, não se pode absolutamente provar a existência de Deus. Mas, por Jesus Cristo e em Jesus Cristo, podemos provar a existência de Deus e ensinar a moral e a doutrina. Jesus Cristo, portanto, é o verdadeiro Deus dos homens”.

E não apenas isso, porque “nós não apenas só conhecemos Deus por meio de Jesus Cristo como também só conhecemos a nós mesmos por meio de Jesus Cristo: nós só conhecemos a vida e a morte por meio de Jesus Cristo. Sem Jesus Cristo, não sabemos o que é a nossa Vida, o que é a nossa morte, o que é Deus, o que somos nós mesmos. Portanto, sem a Escritura, que tem como o seu único objeto a Jesus Cristo, nós não conhecemos nada e só vemos obscuridade e confusão, tanto na natureza de Deus como na nossa”.

13. Contra o “deísmo” e contra um "Descartes inútil e incerto”

Jesus Cristo é a prova de Deus. Não são as provas dos filósofos que provam Deus. Diz Pascal: “Nós conhecemos (...) a existência e a natureza do finito, porque somos finitos e extensos como ele. Conhecemos a existência do infinito, mas ignoramos sua natureza, porque tem extensão como nós, mas não limites como nós. Mas não conhecemos nem a existência nem a natureza de Deus, porque ele é desprovido de extensão ou de limites.” Portanto, nós não conhecemos nem a existência nem a natureza de Deus. “Entretanto, graças à fé, nós conhecemos a sua existência e, no estado de gloria, conheceremos a sua natureza.”

Sendo assim, pode-se compreender muito bem a decidida polêmica que Pascal travou contra os filósofos que pretendiam ter encontrado Deus com suas forças humanas. Pascal é contrário ao Deus “dos filósofos e dos sábios”; é adversário do deísmo; não perdoa Descartes por ter transformado Deus em engenheiro que, depois de ter projetado o mundo, foi descansar. O deísmo, diz Pascal, “está tão distante da religião cristã quanto o ateísmo, que é exatamente o seu oposto”. O deísmo consiste na afirmação de que há um Deus grande, poderoso e eterno. Mas as provas metafísicas relativas à existência de Deus não são de modo algum eficazes e persuasivas: “Não é só impossível, mas também inútil conhecer Deus sem Jesus Cristo. Por outro lado, não posso perdoar Descartes, que, em toda a sua filosofia, gostaria de poder ter deixado Deus de lado, mas que não pôde evitar de fazer com que Deus desse um peteleco no mundo para pô-lo em movimento, depois do que ele não sabe mais o que fazer com Deus." Por isso, acrescenta Pascal, Descartes é “inútil e incerto”: "Incerto porque sua filosofia, verdadeiro romance da natureza, semelhante à história de Dom Quixote, não se baseia em fatos, mas em alguns princípios inventadas por ele e, portanto, suspeitos. Inútil: porque, ao invés de nos conduzir à única coisa necessária, perde-se em vãs especulações” (J. Chevalier).

Nem os metafísicas, nem os deístas e nem Descartes compreenderam a miséria humana e, por isso, não procuraram o verdadeiro Deus, o Deus dos cristãos: “O Deus dos cristãos não é simplesmente um Deus autor das verdades geométricas e da ordem dos elementos, como pensavam os pagãos e os epicuristas. Não é somente um Deus que exerce a sua providência sobre a vida e os bens dos homens para conceder longos anos de felicidade àqueles que o adoram, como pensavam os hebreus. Mas o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus dos cristãos é um Deus de amor e Consolação, é um Deus que preenche a alma e o coração daqueles de quem se assenhoreou, é um Deus que faz cada qual sentir interiormente a sua própria miséria e a misericórdia infinita de Deus, que se une com o íntimo de sua alma, que a inunda de felicidade, de alegria, de confiança e de amor, que toma cada um incapaz de ter outro fim além dele.” Sendo assim, como o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó não é o Deus dos filósofos e dos sábios, então “todos aqueles que procuram Deus fora de Jesus Cristo e se detêm na natureza, não encontram nenhuma luz que os satisfaça ou então chegam a criar um meio de conhecer Deus e servi-lo sem mediador caem no ateísmo ou no deísmo, que são duas coisas quase igualmente detestadas pela religião cristã”.

O conhecimento da existência de Deus é um dom de Deus. O verdadeiro se dá a conhecer por Jesus Cristo. E as verdades de fé não podem ser descobertas e fundamentadas pela razão. Entretanto, a razão não fica de todo inativa em relação à fé. O exercício da razão é relevante para a fé, antes de mais nada quando a razão, barrando a perturbação do divertissement, lança luz sobre a miséria humana. Em segundo lugar, também é a razão que pode avaliar em que medida a fé cristã pode explicar a miséria do homem, dissolver as contradições que envolvem o ser humano e dar sentido à existência humana. Claro, a parte Dei, a fé é dom de Deus. Nós “somos incomparáveis com ele” e Deus é “infinitamente incompreensível". Entretanto, a parte hominis, a razão - e aqui estamos no terceiro ponto - ainda pode fazer alguma coisa. E assim nos defrontamos com o argumento da “aposta”.

14. Por que apostar em Deus

Uma coisa é certa: Deus existe ou não existe. Mas essa certeza propõe o problema mais urgente e dificil: para que lado nos inclinaremos? Diremos que Deus existe verdadeiramente ou que não existe? Diz Pascal: “Aqui, a razão não pode determinar nada: no meio do caminho, há um caos infinito. Na extremidade dessa distância infinita joga-se um jogo no qual sairá cara ou coroa. Em qual das duas ireis apostar? Segundo a razão, não podeis apostar nem em uma nem na outra, como também não podeis excluir nem uma nem a outra. Assim, não acuseis de erro quem já escolheu, porque não sabeis absolutamente nada.”

E isso o que Pascal diz ao seu cético interlocutor imaginário. Mas este pode rebater: “Não, mas eu os censuro não por terem realizado tal escolha, mas por terem escolhido, porque, embora quem escolhe cara e quem escolhe coroa incorram no mesmo erro, ambos estão em erro. A única posição justa é não apostar de modo algum.”

E Pascal retruca: “Sim, mas é preciso apostar: não é uma coisa que dependa dos vossos desejos, é um compromisso. O que escolhereis, portanto? Como é preciso escolher, vejamos aquilo que vos interessa menos. Tendes duas coisas a perder, a verdade e o bem; duas coisas a apostar no jogo, a vossa razão e a vossa vontade, o vosso conhecimento e a vossa bem-aventurança; e vossa natureza deve fugir de duas coisas, o erro e a infelicidade. A vossa razão não é atingida mais por uma escolha do que pela outra, já que é necessariamente preciso escolher. Eis uma questão liquidada. Mas e a vossa bem-aventurança? Vamos pesar o ganho e a perda, no caso de apostardes em favor da existência de Deus. Vejamos estes dois casos: vencendo, ganhareis tudo; perdendo, não perdereis nada. Assim, apostai sem hesitar em que ele existe."

O cético acha “admirável" a argumentação de Pascal. Mas observa-lhe que é preciso apostar, sim, mas que desse modo se está arriscando muito

E Pascal responde a esse ponto: "Como há uma probabilidade igual de vencer e perder, já vos seria conveniente apostar se tivésseis que ganhar apenas duas vidas contra uma. Mas, se houvesse a possibilidade de ganhar três, deveríeis jogar (já que vos encontrais na necessidade de fazê-lo). E, como sois obrigado a jogar, seríeis imprudente em não arriscar vossa vida contra três em um jogo no qual há igual probabilidade de vencer e perder. Mas há aqui uma eternidade de vida e de bem-aventurança. Sendo assim, mesmo que houvesse uma infinidade de casos, dos quais apenas um em vosso favor, sempre haveria razão de apostar um para ganhar dois. E estaríeis agindo sem critério se, sendo obrigado a jogar, vos recusásseis a arriscar uma vida contra três em um jogo no qual, em uma infinidade de probabilidades, houvesse uma apenas para vós, quando se trata de ganhar uma infinitude de vida infinitamente bem-aventurada."

E preciso escolher. E é racional escolher Deus, já que, escolhendo-se Deus, pode-se vencer tudo e não se perder nada. Com efeito, quais seriam os danos, supondo-se que a escolha de Deus fosse uma escolha errada? Afirma Pascal: “Sereis fiel, honesto, humilde, reconhecido, benéfico, amigo sincero, verdadeiro. Para dizer a verdade, não vivereis mais nos prazeres pestíferos, na vaidade, nas delícias. Mas não tereis mais outros prazeres? Eu vos digo que ganhareis nesta vida. E que, a cada novo passo que fizerdes nesse caminho, percebereis tanta certeza de ganho e tão pouco ou nenhum risco que, no fim das contas vereis que apostastes por uma coisa certa, infinita, pela qual não haveis dado nada."

A fé é dom de Deus. Mas a razão pode mostrar pelo menos que essa fé que supera a razão não é contrária à natureza humana. E uma fé que vem ao encontro da miséria humana, explicando-a e resolvendo-a. Conseqüentemente, se a fé é dom de Deus, então, mais do que procurar aumentar o número das provas da existência de Deus, há necessidade de diminuir as nossas paixões. Como diz Pascal no fim das argumentações a propósito do tema da "aposta”: “Sabei que (este discurso) é feito por alguém que se pôs de joelhos antes e depois para rezar àquele Ser infinito e ímpar, ao qual submete todo o seu próprio ser, para que submeta a si também o vosso ser, pelo vosso bem e pela sua glória, e que, portanto, a sua força se harmonize com esta humilhação." Em suma, é preciso tornar-se disponível para receber a graça, embora se possa pensar que o próprio esforço moral de quem "busca gemendo” já seja fruto de graça: “Nada compreendemos das obras de Deus se não tomamos por princípio o fato de que ele quis cegar uns e iluminar outros."

A graça é necessária, porque a queda e a nossa natureza corrupta nos tornaram indignos de Deus. E Deus que se revela, mas o Deus que se revela é, ao mesmo tempo, o Deus absconditus: “Ele ficou oculto sob o véu da natureza que o cobre até a Encarnação. E, quando veio para ele o tempo de se mostrar, ocultou-se ainda mais, cobrindo-se com a humanidade. Ele era bem mais reconhecível quando estava invisível do que quando se tornou visível. E, por fim, (...) decidiu permanecer no mais estranho e incompreensível segredo: a espécie eucarística. “Jesus Cristo é a prova de Deus. E Deus “se oculta àqueles que o experimentam e se revela àqueles que o buscam, porque os homens são ao mesmo tempo indignos de Deus e capazes de Deus: indignos por sua corrupção, capazes por sua natureza primitiva”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Assim que seu comentário for revisado ele será publicado, aguarde.