Texto 14 - Thomas Hobbes - Por Giovanni Reale

1. A vida e Obras

Thomas Hobbes nasceu em Malmesburry, em 1588. A mãe deu-o a luz prematuramente, devido ao terror que lhe causou a notícia da chegada da "Armada Invencível", de modo que, em sua Autobiografia, brincando, ele afirma que sua mãe, junto com ele havia dado à luz como seu irmão gêmeo o medo. Trata-se, porém, de uma observação que, para além da brincadeira constitui, como que uma marca de sua psicologia: a sua teorização do absolutismo tem suas raízes sobretudo, no terror das guerras que ensaguentaram a sua época.



Hobbes aprendeu muito cedo e bem o grego e o latim, tanto que, ainda com quinze anos incompletos,foi capaz de traduzir a Medéia,de Eurípedes, do grego para o latim, em versos. Esse amor pelas línguas clássicas foi uma constante em Hobbes: a primeira obra que publicou, com efeito, foi a tradução da Guerra do Pelopeneso, de Tucídides, ao passo que uma das últimas foi a tradução dos poemas de Homero. Além disso, muito de seus escritos (suas obras-primas) foram redigidos em latim, frequentemente com estilo requintado. O próprio Bacon, no fim da sua vida, recorreu a ajuda de Hobbes para traduzir algumas de suas obras para o latim.



Depois de ter concluído os seus estudo superiores em Oxford, a partir de 1608 tornou-se preceptor junto à poderosa casa dos Cavendish, condes de Devonshire, à qual ficou longamente ligado. Também foi preceptor de Carlos Stuart (o futuro rei Carlos II), em 1646, ou seja, no período em que a corte estava no exílio em Paris, pois Cromwell havia assumido poderes ditatoriais em Londres.



Com a restauração dos Stuart, Hobbes obteve uma pensão do rei Carlos II (de quem, como dissemos, fôra preceptor), podendo assim dedicar-se com tranqüilidade aos seus estudos. Os últimos anos de sua vida, porém, foram amargurados pelas polêmicas suscitadas por seu pensamento muito ousado e, sobretudo, pelas acusações de ateísmo e de heresia, das quais teve que se defender, enfrentando inclusive exigentes estudos sobre a jurisprudência inglesa relativa aos crimes de heresia. Morreu aos noventa e um anos de idade, em dezembro de 1679.


Hobbes transcorreu grande parte de sua vida no continente europeu, especialmente na França, que tanto amava. Fez sua primeira viagem em 1610, à qual seguiram-se outras duas, em 1629 e 1634. Esta terceira viagem foi particularmente importante, pois conheceu pessoalmente Galileu na Itália (embora já houvesse tido notícias dele em sua primeira viagem) e Mersenne na França, o qual o introduziu no círculo dos cartesianos. De 1640 a 1651, viveu em exílio voluntário em Paris. 


Dentre seus escritos, as obras fundamentais são as Objectiones ad Cartesii meditationes, de 1641, o De cive, de 1642, o De corpore, de 1655, o De homine, de 1658, e sobretudo o Leviatã, publicado em 1651 em inglês e em 1670 em latim, em Amsterdã. Por fim, devem-se recordar as obras Sobre a liberdade e a necessidade, de 1654, e Questões relativas à liberdade, à necessidade e ao movimento, de 1660. De suas últimas obras,devem-se recordar uma história da Igreja em versos, intitulada Historia eclesiastica carmine elegiaco concinnata (publicada postumamente em 1688), e uma autobiografia Thomae Hobbesii vita (publicada no mesmo ano de sua morte).

2. A concepção hobbesiana da filosofia e sua divisão

Já nos referimos ao notável conhecimento de línguas clássicas de Hobbes. Entretanto, essas línguas serviram-lhe para se aproximar de poetas e historiadores e não para revisitar e meditar os filósofos antigos. Ele tinha decidida aversão por Aristóteles e mais ainda pela filosofia escolástica (que então era interpretada de modo inteiramente inadequado).


Entretanto, ficou entusiasmado pelos Elementos de Euclides (cf. Vo. I, pp. 286 ss), com sua rigorosíssima construção dedutiva, que ele considerou modelo de método para o filosofar. Também exerceram notável influência sobre Hobbes o racionalismo cartesiano, com as suas instâncias derivadas da revolução científica, e Bacon, com sua concepção utilitarista do saber. Mas talvez a influência mais poderosa tenha sido exercida por Galileu com sua física, tanto que, em várias partes da obra de Hobbes, fica evidente a sua intenção de ser o Galileu da filosofia, em especial o Galileu da ciência políticaEntendida como estudo do movimento, a física não remonta a antes de Galileu, diz expressamente Hobbes, ao passo que a filosofia civil não remonta a antes de sua própria obra Sobre O cidadão (1642).


Vale à pena ler uma parte da Carta dedicatória ao conde de Devonshire, introdutória ao De corpore, que expressa muito eficazmente a nova têmpera espiritual e (como já haviam feito muitas páginas de Descartes e de Bacon) sanciona o fim de uma época do filosofar e o início de uma nova, que fecha as portas do pensamento antigo e medieval, sem possibilidade de recurso por muito tempo. Em particular, Hobbes destaca o seguinte: a) o já ressaltado mérito de Galileu; b) a necessidade de fundar uma nova ciência do Estado com base no modelo galileano; c) a vacuidade e inconsistência da filosofia grega; d) a nocividade da mistura operada pela filosofia veteromedieval cristã entre a Bíblia e a filosofia platõnica e especialmente a aristotélica, o que Hobbes considera uma traição da fé cristã; e) a necessidade de expulsar o monstro metafísico (a Empusa metafísica, dizia Hobbes, recordando o antigo monstro que, na entrada do inferno, assumia a cada vez formas diferentes) e de distinguir a filosofia da religião e das Escrituras. 


Eis agora uma página de Hobbes que representa um dos mais significativos manifestos do pensamento da época moderna: “Galileu foi o primeiro a nos abrir a porta de toda a física, isto é, a natureza do movimento, de tal modo que parece que não se pode fazer a épocda física remontar a antes dele. (Segue-se uma breve relação dos progressos da medicina, como a descoberta da circulação do sangue feita por G. Harvey, e da astronomia, ou seja, da física do corpo humano e da física universal.) A física, portanto, é uma novidade. Mas a filosofia civil o é ainda mais, posto que não é mais antiga do que o livro escrito por mim mesmo Sobre o cidadão (e o digo por ter sido provocado para que os meus denegridores saibam que pouco ganharam com isso). Mas como? Será que não houve entre os antigos gregos nenhum filósofo, nem físico, nem civil? Certamente houve alguns que assim eram chamados, com base no testemunho de Luciano (de Samósata, século II d. C.), que os ironiza, e de algumas cidades das quais, muitas vezes, foram expulsos com editos públicos. Mas nem por isso, necessariamente, houve filosofia. Pairava na antiga Grécia um fantasma em parte parecido com a filosofia pela ausência de gravidade (mas, por dentro, estava cheio de fraude e de poluição). E os homens incautos acharam que era a filosofia, professando-se cultores deste ou daquele, ainda que discordantes entre si, acotovelando-se, e a eles confiavam os seus filhos como a detentores da sabedoria, para que, com lautas recompensas, em nada mais fossem instruídos senão no discutir e, desleixadas as leis, decidir sobre toda questão com o arbítrio de cada um. Nascidos naqueles tempos, os primeiros doutores da Igreja, depois dos apóstolos, enquanto tentavam defender a fé cristã contra os gentios com sua religião natural, também começaram a filosofar, misturando com algumas sentenças extraídas dos filósofos pagãos as sentenças da Sagrada Escritura. Na verdade, no primeiro momento aceitaram de Platão algumas doutrinas menos danosas; mas, em seguida, acolhendo muitas doutrinas estúpidas e falsas também dos livros da Física acroamática e da Metafísica de Aristóteles, traíram a cidadela da fé cristã, como que introduzindo nela os inimigos. A partir daquele momento, no lugar da theosébeia (= piedade, santidade), tivemos aquilo que foi chamado theologia escolástica, que se pôs a caminhar sobre um pé sólido, que era a Sagrada Escritura, e sobre um outro pé, este podre, constituído por aquela filosofia que o apóstolo Paulo chamou de vazia e que podia ter chamado de danosa. Com efeito, ela suscitou inúmeras controvérsias no mundo cristão e das controvérsias fez brotar guerras, como a Empusa do cômico ateniense (= Aristofanes), que em Atenas era considerada demônio de espécie mutável, com um pé de bronze e um pé de asno, enviada por Ecates, como se acreditava, para anunciar uma iminente ruína aos atenienses. Creio que, contra tal Empusa, não se pode pensar em exorcismo melhor do que o de distinguir as regras da religião, que devem ser exigidas pelas leis para honrar e exercer o culto a Deus, das regras da filosofia, isto é, dos dogmas dos privados, atribuindo à Sagrada Escritura aquilo que pertence à religião e aquilo que pertence à filosofia, à razão natural. O que certamente será se eu tratar, como procuro fazer, os elementos da filosofia separadamente, com espírito de verdade e clareza. Por isso, a partir do momento em que, na terceira seção, que vos dediquei depois de publicada há algum tempo (alusão ao citado De cive, de 1642), reivindiquei todo poder, tanto eclesiástico como civil, com razões, muito sólidas, para a única e idêntica suprema autoridade, sem que a isso se oponha o Verbo divino, agora, estabelecidos os verdadeiros princípios da física, concentro-me em amedrontar e banir essa Empusa metafísica, não combatendo, mas sim trazendo luz.” 


Note-se ainda, entre outras coisas, o sabor pré-iluminista desse trecho, em particular no final, com o aceno à caçada à “Empusa metafísica”, que se deve realizar não através do combate das armas, mas somente com os princípios da ciência e com a “luz” que ela traz, que outra coisa não é senão a luz da razão. Esse tema é retomado também na introdução Ao leitor, onde Hobbes diz que a filosofia de que trata não é aquela dos “códices metafísicos”, mas sim fruto da “razão humana natural” e filha da “mente” humana. 


Já falamos das influências de Bacon. E, com efeito, Hobbes também afirma que “o fim da ciência é a potência”. E precisa que a filosofia é da máxima “utilidade”, desde que, aplicando as normas científicas à moral e à política, ela poderá evitar as guerras civis e as 'calamidades e, portanto, poderá garantir a paz


Mas também vale à pena ler outra página de Hobbes, que, juntamente com a anterior, aponta admiravelmente os novos horizontes da filosofia da época moderna: 


“Poderemos compreender otimamente quão grande é a utilidade da filosofia, em primeiro lugar da física e da geometria, quando relacionarmos aquelas que hoje são as principais vantagens do gênero humano e fizermos uma comparação entre as instituições daqueles que gozam desses beneficios e as instituições daqueles que deles estão privados. Os maiores benefícios do gênero humano estão nas artes, sobretudo a arte de medir tanto os corpos los estão inteiramente privadas delas. Por quê? Talvez por que como os seus movimentos, a arte de mover corpos pesadíssimos, a arte de construir, a arte de navegar, a arte de fabricar instrumentos para todo uso, a arte de calcular os movimentos celestes, os aspectos das estrelas ou as partes do tempo, a arte de representar a superfície da terra: é mais fácil entender do que dizer quantos bens derivaram dessas artes para o homem. Desfrutam dessas artes quase todas as populações da Europa, muitas populações da Asia, algumas populações da Africa; mas as populações americanas e as populações mais próximas de um e outro pólos estão inteiramente privadas delas. Por quê? Talvez por que aquelas populações são mais inteligentes do que estas? Talvez todos os homens não tenham almas do mesmo gênero e as faculdades da alma não sejam iguais? O que é, portanto, que uns possuem e outros não senão a filosofia? Assim, a causa de todos esses benefícios é a filosofia. Mas a utilidade da filosofia moral e civil não se deve medir tanto pelas vantagens que derivam do seu conhecimento, mas muito mais pelas calamidades em que incorremos por ignorá-la. Ademais, todas as calamidades que podem ser evitadas com a intervenção ativa do homem nascem da guerra, particularmente da guerra civil: com efeito, dela derivam catástrofes, desolação, falta de todas as coisas. E a causa disso não está no fato de que os homens queiram essas coisas, pois não há outra vontade que a do bem, pelo menos aparentemente, nem está no fato de que não saibamos que essas coisas são más: com efeito, quem não sente que as catástrofes e a pobreza constituem um mal e são nocivas? A causa da guerra civil, portanto, está no fato de que se ignoram as causas da guerra e da paz e de que são pouquíssimos aqueles que aprenderam os seus deveres, pelos quais se fortalece e se conserva a paz, ou seja, a verdadeira regra do viver. Pois, bem, a filosofia moral é precisamente o conhecimento dessa regra. Por que, então, não a aprenderam senão pelo fato de que até agora não nos foi transmitida por ninguém com método claro e exato? Os antigos doutos gregos, egípcios, romanos e outros puderam persuadir a multidão dos ignorantes a respeito de inumeráveis dogmas sobre a natureza dos seus deuses, que eles próprios não sabiam se eram ou não verdadeiros e que eram falsos e absurdos de modo claramente manifesto. Ora, eles mesmos não teriam podido persuadir a multidão de seus deveres, se os houvessem conhecido? Aqueles poucos escritos de geometria que ficaram valem para eliminar qualquer controvérsia nas coisas de que tratam, ao passo que os inumeráveis e grandes volumes de ética, admitindo que contenham coisas certas e demonstradas, não valem nada? E, por fim, em que causa pode-se pensar para o fato de que os escritos dos geômetras são científicos, ao passo que os escritos éticos são apenas, por assim dizer, verbosos senão esta causa: que os primeiros foram produzidos por homens que sabiam, ao passo que os segundos foram produzidos por homens que ignoravam a matéria tratada, escrevendo unicamente para evidenciar a sua eloquência e o seu gênio? Não nego, porém, que a leitura de alguns de tais livros é muito agradável: com efeito, eles estão abarrotados de eloquência e contêm muitas sentenças espirituosas e salutares, de modo algum vulgares, mas sentenças tais que, universalmente enunciadas, as mais das vezes não são universalmente verdadeiras. Decorre daí que, mudadas as circunstâncias de tempo, lugar e pessoas, freqüentemente elas são mais usadas para a confirmação de propósitos celerados do que para a indicação de preceitos relativos a deveres. O que se deseja sobretudo delas é uma regra segura das ações, pela qual se possa saber se aquilo que estamos por fazer é justo ou injusto. E, na verdade, o fato de elas ordenarem fazer aquilo que é justo em todas as coisas é algo inútil sem que tenha sido estabelecida uma norma e uma medida segura do justo (coisa que, até agora, ninguém fez). E, como é da ignorância dos deveres, isto é, da ciência moral, que derivam as guerras civis e, portanto, as maiores calamidades, justamente podemos atribuir os benefícios contrários ao conhecimento daquela ciência. Assim, deixando de lado o valor e os outros prazeres que dela derivam, podemos ver como é grande a utilidade da filosofia.” 


Trata-se, portanto, de afirmações que representam uma clara antítese das que foram tornadas clássicas sobretudo por Aristóteles, que, na Metafísica, escrevia que a filosofia “não tende a realizar alguma coisa” e que nós não a procuramos “por nenhuma vantagem que seja estranha a ela”, mas por puro amor ao saber, isto é, por objetivos "contemplativos".


Com essas premissas, fica clara a nova definição de filosofia: ela tem por objeto os “corpos”, suas causas e suas propriedades. Ela não se ocupa de Deus e da teologia, que cabem à fé, nem daquilo que implica inspiração ou revelação divina, nem se ocupa da história, nem de tudo aquilo que não seja bem fundado ou conjectural. Ora, como os corpos são a) naturais inanimados, b) naturais animados (como o homem) ou então c) artificiais, como o Estado, a flosofia, conseqüentemente, deve ser tripartite. Ela deve tratar: a) do corpo em geral, b) do homem e c) do cidadão e do Estado. Foi com base nessa tripartição que Hobbes concebeu e elaborou a sua célebre trilogia De corpore, De homine e De cive. A divisão da filosofia também pode se articular do seguinte modo: 1) ciência dos corpos naturais e 2) ciência do corpo artificial, com o primeiro ramo subdividido como mostra o esquema a seguir: 


Tudo aquilo que é essência espiritual ou que não é corpóreo está excluído da filosofia. Hobbes, inclusive, afirma drasticamente que aquele que deseja outra forma de filosofia que não esteja ligada à dimensão do corpóreo deverá procurá-la em outros livros, não nos seus. 


3. Nominalismo, convencionalismo, empirismo e sensismo em Hobbes 


Hobbes precede a abordagem dos corpos de uma “lógica" (numa surpeendente analogia com o esquema das filosofias helenísticas, que faziam a lógica preceder à física e à ética, como, por exemplo, a filosofia epicurista). Essa lógica retoma a tradição nominalista da filosofia inglesa tardio-escolástica, assumindo, porém, também alguns elementos de origem cartesiana. 


A lógica elabora as regras do modo correto de pensar. Mas, num contexto nominalista como o de Hobbes, o interesse volta-se mais para o “nome” do que para o pensamento como tal. Com efeito, Hobbes diz que os pensamentos são fluidos e, sendo assim, devem ser fixados com “sinais” sensíveis, capazes de reconduzir à mente pensamentos passados, bem como “registrá-los” e “sistematizá-los” e, posteriormente, transmiti-los aos outros. Foi assim que nasceram os “nomes”, que foram forjados pelo arbítrio humano.  


Eis as significativas afirmações do nosso filósofo: “O nome é um som humano usado por arbítrio do homem para ser sinal com o qual se possa suscitar na mente pensamento semelhante a um pensamento passado e que, disposto no discurso e proferido a outros, seja para eles sinal daquele pensamento que tenha ou não ocorrido antes na própria pessoa que fala.” O fato de que os nomes nascem do arbítrio está provado pelo contínuo surgimento de novas palavras e pela abolição das velhas. - Hobbes fala de nomes “positivos”, como, por exemplo, “homem” e “planta”, e de nomes “negativos”, como, por exemplo, “não- homem” e “não-planta”. Os nomes positivos e os correspondentes negativos não podem ser atribuídos à mesma coisa pensada em um mesmo tempo e a propósito do mesmo dado. Essa é uma significativa transformação do princípio da não-contradição em termos nominalistas. 


Os nomes comuns não indicam conceitos universais, porque só existem indivíduos e conceitos (que, para Hobbes, nada mais são que imagens) de indivíduos, mas trata-se apenas de nomes de nomes, não tendo portanto referência à realidade e não significando a natureza das coisas, mas somente aquilo que nós pensamos dela. 


A definição não expressa (como queriam Aristóteles e toda a lógica clássica e medieval) a “essência” da coisa, mas simplesmente “o significado dos vocábulos”. Dar uma definição nada mais é do que “fornecer o significado do termo usado”. Portanto, as definições são arbitrárias, assim como o são os vocábulos. Da conexão de nomes nasce a proposição, normalmente constituída por um nome concreto que tem função de sujeito e por um nome abstrato que tem função de predicado, ambos ligados pela copulativa. Assim como os nomes, também as proposições primeiras e os axiomas (que são as proposições fundamentais) são fruto do arbítrio daqueles que foram os primeiros a estabelecer os nomes ou os acolher: “Por exemplo, é verdade que o homem é animal, já que se decidiu impor esses dois nomes à mesma coisa. (...) As proposições primeiras (...) nada mais são que definições ou partes de definição e somente elas são princípios de demonstração, isto é, verdades estabelecidas pelo arbítrio daqueles que falam e daqueles que escutam (...).” 


Raciocinar é conectar (ou desconectar) nomes, definições e proposições em conformidade com as regras, fixadas por convenção. Diz Hobbes que raciocinar é “calcular” e “computar”, aliás, mais propriamente, é um somar e subtrair. Por exemplo: 


homem = animal + racional 
animal = homem - racional 


Hobbes não exclui que o raciocinar seja também um multiplicar e dividir: entretanto, a multiplicação é redutível à soma, ao passo que a divisão é redutível à subtração. 


Essa concepção do raciocínio, entendido como “compor”, “decompor” e “recompor” e baseado em semantemas ou sinais lingüísticos, bem como o respectivo pano de fundo convencionalístico, surpreendem pela modernidade e pela extraordinária ousadia, já que contém pressentimentos da cibernética contemporânea (pressentimentos, note-se bem, mais do que antecipações). Vejamos dois trechos, um extraído do De corpore e outro do Leviatã, que, por esse motivo, tornaram-se muito famosos. 


“Por raciocínio entendo o cálculo. Calcular é captar a soma de muitas coisas uma agregada à outra ou conhecer o resto quando subtraída uma coisa de outra. Raciocinar, portanto, é o mesmo que adicionar e subtrair. E, se alguém quisesse acrescentar o multiplicar e o dividir, eu nada teria em contrário, já que a multiplicação outra coisa não é do que a adição de termos iguais e a divisão nada é além da subtração de termos iguais tantas vezes quantas for possível. Assim, todo raciocínio se reduz a estas duas operações da mente: a adição e a subtração.” 


“Quando se raciocina, nada mais se faz senão conceber urna soma total da adição de partículas ou conceber um resto da subtração de uma soma de outra. Isso (se feito através de vocábulos) significa conceber a conseqüência de nomes de todas as partes com o nome do todo ou dos nomes do todo e de uma parte com o nome da outra parte. E, embora em algumas coisas (como nos números), além do adicionar e do subtrair, fale-se em outras operações, como o multiplicar e o dividir, elas são também a mesma coisa, pois multiplicar nada mais és do que adicionar coisas iguais e a divisão nada mais é do que subtrair uma coisa quantas vezes for possível. Não encontramos essas operações somente nos números, mas também em toda espécie de coisas que podem ser adicionadas uma à outra ou subtraídas uma da outra. Com efeito, assim como os aritméticos ensinam a adicionar e subtrair no campo dos números, da mesma forma os geômetras ensinam as mesmas coisas no campo das linhas, das figuras (sólidas e superficiais), dos ângulos, das proporções, dos tempos, dos graus de velocidade, força, potência e semelhantes. E os lógicos ensinam as mesmas coisas no campo das conseqüências dos vocábulos, adicionando dois nomes para fazer uma afirmação, duas afirmações para fazer um silogismo, vários silogismos para fazer uma demonstração, enquanto da soma ou conclusão de um silogismo, subtraem uma proposição para encontrar a outra. Os escritores de política adicionam duas combinações para encontrar os deveres dos homens, enquanto os juristas adicionam leis e fatos para encontrar aquilo que é correto e aquilo que é errado nas ações dos indivíduos. Em suma, em qualquer matéria em que haja lugar para a adição e a subtração também há lugar para a razão; e, ao contrário, onde não há lugar para elas, também a razão não tem nada a fazer aí. A partir de tudo isso, podemos definir (vale dizer, determinar) o que se quer dizer com o vocábulo razão quando o calculamos entre as faculdades da mente. Com efeito, nesse sentido, a razão nada mais é que o cálculo (isto é, a adição e a subtração) das conseqüências dos nomes gerais em torno dos quais se está de acordo para marcar e significar os nossos pensamentos: digo marcar quando os calculamos por nós mesmos e significar quando demonstramos ou comprovamos os nossos cálculos aos outros homens.” 


Essa concepção do raciocinar como calcular, como decompor e recompor, entre outros, inspira-se também em Descartes, mas com notáveis diferenças. Com efeito, Descartes partia das verdades primeiras, que, em virtude de sua evidência intuitiva, tinham precisa garantia de objetividade, ao passo que Hobbes se desloca para o plano do convencionalismo, esvaziando dessa forma o discurso sobre a objetividade. Entretanto, para concluir este tema, devemos destacar que o nominalismo de Hobbes não se funda em bases céticas, mas muito mais empíricas, sensistas e fenomenistas. Com efeito, por um lado, ele admite que os nossos pensamentos (que são designados e expressos por nomes) são “representações ou aparências” dos objetos que estão fora de nós, sendo em nós produzidas através da experiência dos sentidos. Hobbes diz textualmente: “A origem de todos (os pensamentos) é aquilo que nós chamamos sentido (pois não há nenhuma concepção da mente humana que não tenha sido inicialmente, no todo ou em parte, gerada pelos órgãos do sentido). O resto é derivado daquela origem.” E chega inclusive a dizer que a causa do sentido é “o corpo externo ou objeto”. Ademais, quando Hobbes diz que a definição não expressa a essência da coisa, mas “aquilo que nós concebemos da essência da coisa”, não enuncia uma negação cética, mas sim opera uma redução fenomenista (só conhecemos da essência aquilo que dela nos aparece). Em suma, ele caminha numa linha que é típica do pensamento inglês e que se imporia de modo sempre mais acentuado. 


4. Corporeísmo e mecanicismo 


Como dissemos, para Hobbes a filosofia é ciência dos “corpos” e, podemos acrescentar, mais precisamente, ciência das causas dos corpos. Os modelos dessa ciência (como também já vimos) são a geometria de Euclides e a física de Galileu. Mas a diferença entre geometria e física é notável. As premissas da geometria são postulados fixados por nós (postulados que nós estabelecemos) e a “geração” das figuras é produzida por nós através das linhas que traçamos, de modo que elas “dependem do nosso arbítrio”. Hobbes precisa: “Exatamente pelo fato de que somos nós mesmos a criar as figuras é que há uma geometria e que ela é demonstrável.” 


Nós conhecemos perfeitamente aquilo que nós mesmos estabelecemos, fazemos e construímos (trata-se, aqui, de princípio que teria ampla repercussão e que Vico imporia de modo sistemático). Mas já não podemos com tanta certeza conhecer as coisas naturais, porque não somos nós que as construímos. E conclui Hobbes: “Entretanto, a partir das próprias propriedades que vemos, deduzindo as conseqüências até onde nos é dado fazê- lo, podemos demonstrar que suas causas podem ter sido estas ou aquelas.” E, como as coisas naturais nascem do movimento, fica assim identificada a sua causa principalNaturalmente, não se trata do movimento concebido aristotelicamente, mas sim do movimento quantitativamente determinado, ou seja, medido matemática e geometricamente (o movimento galileano). 


Assim, Hobbes tenta explicar toda a realidade com base em apenas dois elementos: 1) o corpo entendido como aquilo que não depende do nosso pensamento e que “coincide e se co-estende com uma parte do espaço”; 2) do movimento entendido do modo que indicamos. É esse o seu materialismo, ou melhor, o seu corporeísmo mecanicista, que tantas polêmicas suscitou em sua época. 


Aliás, é verdade que, por vezes, Hobbes parece apresentar o seu “corporeísmo” quase que como uma “hipótese” e não como um dogma. Mas também é verdade que, na maior parte dos seus textos, ele desenvolve essa sua concepção como tese sem reservas, tanto que tende a entender até Deus em termos corporeístas. O que não deixou der suscitar vivas objeções e acusações, das quais se defendeu, entre outras coisas, chamando em causa o ilustre precedente de um Padre da Igreja, ou seja, Tertuliano (cf. Vol. I, p. 425). 


Assim o corpo e o movimento local explicam todas as coisas. As qualidades são “fantasmas do sensível”, ou seja, efeitos dos corpos e do movimento. Todas as chamadas qualidades sensíveis, escreve Hobbes, “no objeto que as causa, nada mais são do que movimentos variados (já que movimento só produz movimento)”. E as alterações qualitativas e os próprio processos de geração e corrupção, desse modo, também são reduzidos a movimento (local). 


Conseqüentemente, também os processos cognoscitivos não podem ter outro tipo de explicação senão o mecanicista. Na verdade, em certos momentos, Hobbes parece reconhecer aos fenômenos do conhecimento certo estatuto privilegiado, escrevendo o seguinte no De corpore: “De todos os fenômenos que estão em torno de nós, o mais admirável é o próprio phaínesthai (= aparecer), isto é, o fato de que alguns corpos naturais têm em si mesmos os modelos de quase todas as coisas, ao passo que outros não têm nenhum. Desse modo, se os fenômenos são os princípios do conhecimento de todas as outras coisas, deve-se dizer que a sensação é o princípio do conhecimento daqueles mesmos princípios, que toda ciência dela deriva e que, para a pesquisa de suas causas, não se pode começar por outro fenômeno que não seja ela mesma.” 


Mas, depois, ele deixa de lado essa ordem de considerações e passa a explicar a própria sensação com base no movimento, mais precisamente com base no movimento gerado pelo sujeito sensível, que, por seu turno, reage com outro movimento, do qual, precisamente, surge a imagem ou representação. Também são “movimentos” os sentimentos de prazer e dor, o apetite e o desejo, o amor e o ódio e até o próprio querer.


Conseqüentemente, Hobbes nega a liberdade, pois os movimentos e os nexos mecânicos que dele derivam são rigorosamente necessários. Escreve ele no De corpore: “A liberdade de querer ou não querer não é maior no homem do que nos outros seres animados. Com efeito, o desejo foi precedido pela causa própria do desejo e, por isso, o próprio ato do desejo (. . .) não podia deixar de segui-lo, ou seja, segue-se necessariamente. Portanto, nem na vontade dos homens nem na dos animais se encontra tal liberdade, livre da necessidade. Se entendemos por liberdade não a faculdade de querer, mas sim a faculdade de fazer aquilo que se quer, então certamente pode-se conceder aquela liberdade a uma e à outra e, quando ela existe, existe igualmente em uma e em outra.” 


É evidente que, estabelecendo-se dado movimento como causa “antecedente”, daí deve necessariamente brotar um movimento “conseqüente”. A liberdade romperia esse nexo e, por conseguinte, infringiria a lógica do corporeísmo e do mecanicismo. Nos horizontes do materialismo, não há espaço para a liberdade. Mas, nesse horizonte, não pode haver também espaço para o “bem” (e o “mal”) objetivo e, portanto, para os “valores morais”. Com efeito, para Hobbes, bem é aquilo ao qual tendemos e mal aquilo do qual fugimos. Mas, como alguns homens desejam algumas coisas e outros não e como alguns fogem de algumas coisas e outros não, daí decorre que bens e males são relativos. Não se pode dizer sequer de Deus que seja o bem em absoluto, porque “Deus é bom para todos aqueles que invocam o seu nome, mas não para aqueles que blasfemam o seu nome. Assim é relativo à pessoa, ao local, ao tempo e às circunstâncias, como o sofista Protágoras já havia sustentado na Antigüidade.  

Mas, se o bem é relativo, não havendo portanto valores absolutos, como é possível construir uma moral e uma vida social? Como é possível a convivência dos homens em uma sociedade? As duas obras-primas de Hobbes, o De cive e o Leviatã, são dedicados precisamente à resposta a esses problemas. 


5. A teorização do Estado absolutista 


Os pressupostos que constituem a base da construção da sociedade e do Estado de Hobbes são fundamentalmente dois. 1) Em primeiro lugar, o nosso filósofo admite que, embora todos os bens sejam relativos, há, porém, entre eles um bem primeiro e originário; que é constituído pela vida e sua conservação (e, sobretudo, um mal primeiro, que é a morte). 2) Em segundo lugar, ele nega que existam uma justiça e uma injustiça naturais, já que, como vimos, não existem “valores” absolutos, sustentando que os valores são fruto de “convenções” estabelecidas por nós mesmos e que, portanto, são cognoscíveis de modo perfeito e a priori, juntamente com tudo o que delas deriva. 


Assim, o “egoísmo” e o “convencionalismo” são os pontos cardeais da nova ciência política, que, segundo Hobbes, pode se desdobrar como sistema dedutivo perfeito, assim como o da geometria euclidiana. 


Para compreender adequadamente a nova concepção política de Hobbes é oportuno recordar que ela constitui a mais radical subversão da clássica posição aristotélica. Com efeito, o Estagirita sustentava que o homem é “animal político”, ou seja, é constituído de tal modo que, por sua própria natureza, é feito para viver com os outros em sociedade politicamente estruturada. Ademais, ele identificava essa condição de “animal político” do homem com o estado próprio também de outros animais, como as abelhas e as formigas, que desejando e evitando as mesmas coisas e voltando suas ações para fins comuns, se agregam espontaneamente. 


Pois Hobbes contesta vivamente a proposição aristotélica e a comparação. Para ele, cada homem é profundamente diferente dos outros homens e, portanto, deles separado (é um átomo de egoísmo). Assim, cada homem não é de modo algum ligado aos outros homens por um consenso espontâneo como o dos animais, que se baseia em um “apetite natural”. Com efeito, a) em primeiro lugar, existem entre os homens motivos de contendas, invejas, ódios e sedições que não existem entre os animais; b) em segundo lugar, o bem de cada animal que vive em sociedade não difere do bem comum, ao passo que no homem o bem privado difere do bem público; c) em terceiro lugar, os animais não percebem defeitos em sua sociedade, ao passo que o homem os percebe, querendo introduzir contínuas novidades, que constituem causas de discórdias e guerras; d) em quarto lugar, os animais não têm a palavra, que nos homens é freqüentemente uma “trombeta de guerra e sedição”; e) em quinto lugar, os animais não se censuram uns aos outros, ao passo que os homens sim; f) por fim, nos animais o consenso é natural, enquanto os homens não o é, como já dissemos.


Assim, o Estado não é natural, mas sim artificial. E surge do modo como passamos a explicar. A condição em que os homens se encontram naturalmente é uma condição de guerra de todos contra todos. Cada qual tende a se apropriar de tudo aquilo que necessita para a sua própria sobrevivência e conservação. E, como cada qual tem direito sobre tudo, não havendo limite imposto pela natureza, nasce então a inevitável predominância de uns sobre os outros. (E nesse contexto que Hobbes usa a frase de Plauto homo homini lupus, “o homem é o lobo do homem”, que, no entanto, não tem aquele significado de sinistro e radical pessimismo moral que muitos nela viram, porque pretende ser uma pura constatação estrutural, indicando uma situação à qual deve-se dar remédio. Eis as suas palavras: “Certamente, afirrna-se com razão tanto que o homem é um deus para o homem como que o homem é o lobo do homem, o primeiro em relação aos concidadãos, o segundo em relação aos Estados. No primeiro caso, chega a assemelhar-se a Deus pela justiça e a caridade, as virtudes da paz. No segundo caso, por causa da insolência dos maus, também os bons, se quiserem se defender, têm de recorrer à força e ao engano, as virtudes da guerra, isto é, à ferocidade das bestas. E, embora os homens se censurem mutuamente por essa ferocidade, porque, por costume inato, consideram suas próprias ações, nos outros, como se estivessem refletidas num espelho, trocando a esquerda pela direita e a direita pela esquerda, entretanto não pode ser vício aquilo que é direito natural, derivado da necessidade da própria conservação.”) 


Nessa situação, o homem está arriscado a perder o bem primário, que é a vida, ficando a cada instante exposto ao perigo de morte violenta. Ademais, também não pode dedicar-se a alguma atividade industrial ou comercial, cujos frutos permaneceriam sempre incertos, nem pode cultivar as artes e tudo aquilo que é agradável - em suma, cada homem permanece só, com o seu terror de poder a cada instante perder a vida de modo violento. 


Mas o homem escapa dessa situação recorrendo a dois elementos básicos: a) a alguns instintos; b) à razão. 


a) Os instintos são o desejo de evitar a guerra contínua para salvar a vida e a necessidade de conseguir aquilo que é necessário para a sua sobrevivência. 


b) A razão, aqui, é entendida não tanto como valor em si, mas muito mais como instrumento capaz de realizar aqueles desejos de fundo.


Desse modo, nascem as “leis da natureza”, que nada mais são do que a racionalização do egoísmo, as normas que permitem concretizar o instinto de autoconservação. Escreve Hobbes: “Uma lei da natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, descoberta pela razão, que veta ao homem fazer aquilo que é lesivo à sua vida ou que lhe tolhe os meios para preservá-la e omitir aquilo com que ele pensa que sua vida possa ser mais bem preservada.” 


Habitualmente, são recordadas somente as primeiras três, que são as principais. Mas, no Leviatã, Hobbes relaciona dezenove. O modo como ele as propõe e deduz dá idéia perfeita de como ele se serviu do método geométrico aplicado à ética e de como ele pretendia, sob essa nova roupagem, reintroduzir os valores morais que havia excluído, sem os quais não se pode construir nenhuma sociedade. 


1) A regra primeira e fundamental ordena que o homem se esforce por buscar a paz. Escreve Hobbes: “E um preceito ou regra geral da razão que cada homem deva se esforçar pela paz quando tem esperança de obtê-la e, quando não puder obtê-la, procure e use todos os recursos e benefícios da guerra. A primeira parte desta regra contém a primeira e fundamental lei natural, que é buscar a paz e consegui-la. A segunda contém a síntese do direito natural, que é defender-se com todos os meios possíveis.” 


2) A segunda regra impõe que se renuncie ao direito sobre tudo, ou seja, àquele direito que se tem no estado natural, que é precisamente o direito que desencadeia todas as contendas. A regra, portanto, prescreve “que um homem, quando os outros também estiverem, esteja disposto, se o julgar necessário para a sua própria paz e defesa, a abdicar desse direito a todas as coisas e que se contente em ter tanta  liberdade contra os outros homens quanta ele concederia aos outros homens contra si”. Essa, comenta o nosso filósofo, “é a lei do Evangelho: tudo aquilo que exiges que os outros te façam, faze-o a eles. Essa é a lei de todos os homens: quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris”. 


3) A terceira lei impõe, uma vez que se tenha renunciado ao direito a tudo, “que se cumpram os acordos feitos”. E daí nascem a justiça e a injustiça (justiça é manter os acordos feitos, injustiça é transgredi-los). A essas três leis básicas seguem-se outras dezesseis, que resumimos brevemente a seguir: 


4) A quarta lei prescreve que se restitua os benefícios recebidos, de modo que os outros não se arrependam de tê-los feito e continuem a fazê-los. Daí nascem a gratidão e a ingratidão. 


5) A quinta prescreve que cada homem deve tender a se adaptar aos outros. Daí nascem a sociabilidade e o seu contrário. 


6) A sexta lei prescreve que, quando se tiver as devidas garantias, deve-se perdoar aqueles que, arrependendo-se, o desejem


7) A sétima prescreve que, nas vinganças (ou punições), não se deve olhar para o mal passado recebido, mas sim para o bem futuro. A não observância desta lei dá lugar à crueldade. 


8) A oitava lei prescreve que não se deve declarar ódio ou desprezo pelos outros com palavras, gestos ou atos. A infração a essa lei é chamada “injúria”. 


9) A nona lei prescreve que cada homem deve reconhecer o outro como igual a si por natureza. A infração a essa lei é o orgulho. 


10) A décima lei prescreve que ninguém deve pretender que seja reservado para si qualquer direito que não lhe agrade seja reservado a algum outro homem. Daí nascem a modéstia e a arrogância. 


11) A décima primeira lei prescreve ao homem a quem é confiada a função de julgar entre um homem e outro que se comporte com equidade entre os dois. Daí nascem a equidade e a parcialidade. 


As oito leis restantes prescrevem o uso comum das coisas indivisíveis, a regra de confiar à sorte (natural ou estabelecida por convenção) a fruição dos bens indivisíveis, o salvo-conduto para os mediadores da paz, a arbitragem, as condições de idoneidade para julgar com equidade e a validade dos testemunhos. 


Entretanto, em si mesmas, essas leis não bastam para constituir a sociedade, já que também é preciso um poder que obrigue os homens a respeitá-las: “sem a espada que lhes imponha o respeito, os acordos” não servem para atingir o objetivo a que se propõem. Por conseguinte, segundo Hobbes, é preciso que todos os homens deleguem a um único homem (ou a uma assembléia) o poder de representá-los. 


Mas note-se bem um pormenor: esse “pacto social” não é firmado pelos súditos com o soberano, mas sim pelos súditos entre si. (Totalmente diferente seria o pacto social de que falaria Rousseau; cf. pp. 769 ss) O soberano fica fora do pacto, permanecendo como o único a manter todos os direitos originários. Se o soberano também entrasse no acordo, não se eliminariam as guerras civis, porque nasceriam contrastes diversos na gestão do poder. O poder do soberano (ou da assembléia) é indivisível e absoluto. Essa é a mais radical teorização do Estado absolutista, deduzida não do “direito divino” (como havia sido feito no passado), mas sim do “pacto social” que descrevemos. 


Como o soberano não participa do pacto, uma vez recebidos em suas mãos todos os direitos dos cidadãos, ele os detém irrevogavelmente. Ele está cima da justiça (porque a terceira regra, como as outras, vale para os cidadãos, mas não para o soberano). Ele também pode interferir em matéria de opiniões, julgar, aprovar ou proibir determinadas idéias. Todos os poderes devem se concentrar em suas mãos. A própria Igreja deve-se sujeitar a ele. O Estado, portanto, também pode interferir em matéria de religião. E, como Hobbes crê na revelação divina e, portanto, na Bíblia, o Estado que ele concebe, em sua opinião, também deverá ser árbitro em matéria de interpretação das Escrituras e de dogmática religiosa, impedindo dessa forma todo motivo de discórdia. O absolutismo desse Estado é verdadeiramente total


Ficheiro:Leviathan gr.jpg6. O Leviatã e conclusões sobre Hobbes 


Na Bíblia, o livro de (caps. 40-41) descreve o “Leviatã” (que, literalmente, significa “crocodilo”) como monstro invencível. A longa descrição se conclui do seguinte modo: 


Quando se ergue, as ondas temem
e as vagas do mar se afastam. 
Os músculos de sua carne são compactos, 
são sólidos e não se movem. 
Seu coração é duro como rocha, 
sólido como pedra de amolar.
A espada que o atinge não resiste,
nem a lança, nem o dardo, nem o arpão. 
O ferro para ele é como palha; 
o bronze, como madeira carcomida. 
A flecha não o afugenta, 
as pedras da funda são felpas para ele. 
A maça é para ele como lasca, 
ri-se do sibilo dos dardos. 
Seu ventre coberto de cacos pontudos 
é grade de ferro que se arrasta sobre o lodo. 
Faz ferver o abismo como caldeira 
e fumegar o mar como piveteiro. 
Deixa atrás de si esteira brilhante, 
como se o oceano tivesse cabeleira branca. 
Na terra ninguém se iguala a ele, 
pois foi feito para não ter medo. 
Afronta os mais altivos, 
é rei das feras soberbas. 


Hobbes adota precisamente o nome de “Leviatã” para designar o Estado e também como título simbólico da obra que sintetiza todo o seu pensamento. Mas, ao mesmo tempo, ele também o designa como “deus mortal”, porque a ele (abaixo do Deus imortal) devemos a paz e a defesa de nossa vida. Mas a dupla denominação é extremamente significativa: o Estado absolutista por ele concebido é verdadeiramente metade monstro e metade deus mortal, como mostra sinteticamente esta página, de modo paradigmático: 


“O único caminho para erigir um poder comum que possa estar em condições de defender os homens da agressão estrangeira e das injúrias recíprocas e, assim, tranqüilizá-los de tal modo que possam se nutrir e viver satisfeitos com sua própria indústria e com os frutos da terra, é o de conferir todos os seus poderes e toda a sua força a um homem ou a uma assembléia de homens que possa reduzir todas as suas vontades, por meio da pluralidade das vozes, a uma só vontade. E o mesmo que designar um homem ou uma assembléia de homens para representar a sua pessoa e cada um aceitar e se reconhecer a si mesmo como autor de tudo aquilo que o representante de sua pessoa sustenta, faz ou defende, naquelas coisas que dizem respeito à paz e à segurança comuns, em tudo isso submetendo a sua vontade à vontade dele e cada juízo seu ao juízo dele. Isso é mais do que o consenso ou a concórdia: é uma unidade real de todos em uma só e mesma pessoa, feita pelo pacto de cada homem com todo outro homem, de tal modo que, se cada homem dissesse a todo outro homem: eu autorizo e cedo o meu direito de governar-me a mim mesmo a esse homem ou a essa assembléia de homens, com a condição que  tu lhe cedas o teu direito e autorizes todas as suas ações da mesma forma. Feito isso, a multidão assim unida em uma só pessoa é chamada de ESTADO, em latim CIVITAS. Essa é a geração daquele grande LEVIATÃ, ou melhor (para falar com maior reverência), daquele deus mortal, ao qual nós devemos, sob o Deus imortal, a nossa paz e a nossa defesa. Com efeito, por meio dessa autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é tanta a potência e tanta a força que lhe foram conferidas e das quais ele faz uso que, com o terror delas, ele está em condições de conformar a vontade de todos à paz interna e à ajuda recíproca contra os inimigos externos. Nisso consiste a essência do Estado, que (se se quiser defmi-lo) é uma pessoa de cujos atos cada membro de uma grande multidão, com pactos recíprocos, um em relação ao outro e vice-versa, se faz autor, para que ela possa usar a força e os meios de todos como pensar que é mais vantajoso para a sua paz e para a sua defesa comum.” 


Hobbes foi acusado de ter escrito o Leviatã para granjear as simpatias de Cromwell, legitimando teoricamente sua ditadura para poder assim voltar à sua pátria. Mas essa acusação é largamente infundada, porque as raízes da construção política do nosso filósofo estão nas mesmas premissas do corporeísmo ontológico, que nega a dimensão espiritual e, portanto, a liberdade e os valores morais objetivos e absolutos, bem como no seu “convencionalismo” lógico. 


Hobbes também foi acusado de ateísmo. Mas ele certamente não era ateu. Metade do seu Leviatã se ocupa de temas nos quais a religião e o cristianismo estão em primeiro plano. No entanto, é verdade que a sua posição corporeísta, contra as suas próprias intenções e afirmações, se levada às extremas conseqüências, acabava por levar à negação de Deus ou, pelo menos, tornar sua existência problemática. 


O ponto culminante das várias dificuldades do pensamento de Hobbes consiste em ter tomado a ciência (geometria e física) como modelo a ser imitado em filosofia. Acontece que os métodos das ciências matemáticas e naturais não podem ser transferidos para a filosofia sem provocar drásticas reduções, que geram uma série de aporias indesejáveis, como, em parte, já havia acontecido com Descartes e como aconteceria com Kant de modo paradigmático. 


Contudo, é precisamente essa a marca que caracteriza grande parte da filosofia moderna, por influência da revolução científica galileana. 


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